Resistência negra ganha espaço no Festival de Parintins

Autor: Adriane Vasconcelos de Souza - assistente de comunicação acadêmica

É comum que, quando se pense no Amazonas, sua população seja associada à imagem do indígena. Não por acaso, afinal, a região concentra grande parte das etnias que existem no Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mas o povo amazonense é, tal como em todo o país, uma miscigenação sob influência indígena, negra, ribeirinha e branca.

Com a forte presença do negro na construção desse povo, também nascem expressões artísticas e culturais sob essas influências. Essa riqueza cultural se manifesta no Festival Folclórico de Parintins, com a festa do boi-bumbá, a maior expressão cultural da região norte do país. No entanto, nem sempre a cultura negra foi valorizada.

“Por muito tempo, a contribuição do negro na construção da festa foi invisibilizada. Somente em 2017, com toda a discussão em torno disso, é que os bois reafirmaram a presença do negro como parte fundamental da festa”, relata o artista Fábio Modesto, que atualmente representa a figura do Pai Francisco na festa.

Segundo a tradição, a história do boi se inicia quando mãe Catirina, mulher negra grávida, fica com desejo de comer a língua do boi mais querido do seu amo (dono da fazenda). Para satisfazer o desejo dela, pai Francisco, seu esposo, mata o boi mais querido da fazenda, provocando a ira do patrão e a tristeza da sinhazinha. Na tentativa de ressuscitar o boi, o amo chama o pajé. Com orações e pajelança, o indígena consegue trazer o boi de volta à vida, porém, agora ele é de pano e de brinquedo, transformou-se em bumbá.

Essa história é recontada todos os anos no final do mês de junho, durante a festa marcada pela tradição e que reúne diferentes crenças, raças e etnias representados na figura dos personagens Pai Francisco, Mãe Catirina, Gazumbá, Pajé, Amo do boi (dono do boi) e sua filha, a Sinhazinha. O elemento central é a rivalidade entre os bumbás: Garantido (boi da cor vermelha) e boi Caprichoso (boi da cor azul).

Por muito tempo, as figuras negras da história eram representados por pessoas brancas que se pintavam de preto. O fato gerou discussão no festival de 2019, quando os jurados (que julgam as apresentações dos bois) se sentiram incomodados com o fato do pai Francisco ser um homem branco pintado de preto.

“Apesar da Adria Barbosa (mãe Catirina do boi Caprichoso) ser uma mulher negra, o seu par, Pai Francisco, era um homem branco pintado de preto. Após o término da festa, os jurados se pronunciaram em relação à prática do black face [pintura da pele com tinta preta] no festival”, recorda-se Modesto.

Apontar isso no festival trouxe mudanças significativas para a festa, trazendo atores negros para representar os personagens em questão.  “As pessoas negras puderam se sentir verdadeiramente representadas no boi-bumbá”, avalia Modesto.

E as mudanças também foram além dos atores, alterando a forma com que os personagens são representados. Na visão de Modesto, antes esses personagens que antes eram tidos como figura caricata e meio circense. Hoje a festa não começa e não evolui sem eles e, tampouco os bois pontuam sem a presença deles na arena.

Quando ainda era apenas espectador do evento, Kelyson Castro, que é de origem quilombola, recorda que não se via representado e se sentia mal pelas figuras negras estarem sendo ridicularizadas, pintadas de preto. “Diante das críticas, o boi foi evoluindo e ganhando essa cara que vemos hoje. Carregar essa responsabilidade de representar figuras negras no festival é algo muito grande, pois estamos transmitindo uma mensagem para as próximas gerações”, pontua.

Hoje Castro é quem dá vida ao Gazumbá no Festival. Seu personagem é o símbolo do negro na festividade e acompanha Mãe Catirina e Pai Francisco durante o espetáculo. “É um privilégio”, afirma.

As figuras negras no auto do boi do Festival de Parintins são o espelho da diversidade étnica da Amazônia, e sua apresentação é o símbolo de resistência de um povo que ajudou a construir um estado.

Apesar das figuras do indígena e do ribeirinho se sobressaírem na imagem da população amazônica, Castro reforça a importância da população negra na construção da região. “Na cartografia social da Amazônia, os quilombos aparecem e estão localizados em diversas cidades do estado, como o quilombo da praça 14, em Manaus, em Novairão, em Serpa e no Rio Andirá, no município de Barreirinha”, pontua.

Atualmente, os bois têm se dedicado em levar para o espetáculo, toadas e rituais sobre a participação do negro na construção da festa folclórica. “A gente se sente mais abraçado pela cultura, por estarmos diretamente inseridos e representados de fato no festival. Isso significa que ele está evoluindo. É uma mudança importante dentro do festival e para toda a população negra”, ressalta Modesto.

 

A presença do negro na sociedade e na cultura amazonense foi tema do programa papo Castiço, da Rádio Uninter que teve como convidados Fábio Gonçalves Modesto (personagem pai Francisco) e Kelyson dos Santos Castro (personagem Gazumbá).

 

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Autor: Adriane Vasconcelos de Souza - assistente de comunicação acadêmica
Edição: Larissa Drabeski


1 thought on “Resistência negra ganha espaço no Festival de Parintins

  1. Belíssima e importantíssima entrevista. Enaltece não só a presença desses personagens, como também, a importância cultural desse festival, não só para Parintins/AM como para o país que desconhece muito da sua própria cultura e nesse casa da grandiosidade é imponência apresentada neste festival…
    Feito por parte das consideradas “minorias” para muitos dos nossos governantes e sociedade do sudeste e sul do país.
    Acorda Brasil!!!

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