“Renasci para uma nova chance de vida”

Autor: Sandy Lylia da Silva e Nayara Rosolen

Daniel (ao centro, de regata preta) recebeu visitas de amigos e familiares durante internamento.

“Que luta!”, com ar de nostalgia, exclamam os familiares e amigos de Daniel Dias Maciel, 37 anos. A expressão, que outrora significou a frustração de vê-lo em um leito de hospital, sem autonomia para se movimentar ou mesmo se comunicar, hoje sai como forma de lembrar dos momentos difíceis que se passaram e reforçar uma vitória perante a (quase) morte.

Aos 29 anos, um trombo no cérebro, formado por coágulos sanguíneos na veia e que dificultam a circulação do sangue, foi o que fez Daniel mudar completamente a rota que havia planejado para a própria vida. Policial militar na época, em Belo Horizonte (MG), o jovem se preparava no Curso de Formação de Sargentos (CFS) e carregava uma trajetória dedicada, em busca de estabilidade financeira e melhor qualidade de vida para ele e para a mãe, dona Nadir.

Segundo os amigos, “é difícil conhecer alguém tão dedicado”. “Cresceu num lar afetuoso, que permitiu que ele se transformasse num grande homem, cheio de virtudes e de caráter impecável”, garantem.

“A ótima criação que tive somente da minha mãe influenciaram para que eu crescesse e me tornasse uma pessoa de boa índole, sem a presença do pai […] muito amorosa e responsável, me ensinou valores como honestidade, também me corrigia quando necessário”, aponta Daniel.

Ao chegar à maioridade, Daniel começou a trabalhar para ajudar no sustento da casa, que dividia apenas com a mãe desde os três anos de idade, quando os pais se separaram. Antes de se tornar soldado, foi chamado por um vizinho para trabalhar de balconista em uma loja de autopeças. Com o desejo de melhorar a qualidade de vida, tinha vontade de entrar para o ensino superior, mas ainda sem renda, decidiu prestar concurso para a Polícia Militar de Minas Gerais (PM). E foi aprovado.

Já como servidor público, dedicou-se também a estudar para o vestibular de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e também conquistou a vaga. No entanto, depois de cinco períodos, Daniel percebeu que não era bem a área que gostaria de atuar e, como policial, descobriu um novo sonho profissional: queria ser preparador físico dentro da PM. Com um histórico bastante ativo em corrida e natação, ele também pedalava bastante e frequentemente fazia o trajeto de 20 quilômetros de distância de casa até o trabalho de bicicleta.

Assim, o jovem deixou a Arquitetura e começou a preparação para o vestibular de Educação Física, na UFMG. Como já esperado, a vaga era dele de novo. Daniel cursou dois períodos da graduação, mas mais uma vez precisou adiar, pois foi aprovado também no CFS e, como a preparação acontece durante um ano, em tempo integral, não conseguiria conciliar. O ano de 2014, marcado por tantas conquistas, também seria de renascimento.

Mudança de rota

No dia 4 de dezembro, Daniel completou 29 anos. Dois dias depois, comemorava também o aniversário de um amigo, Robinho. De folga no dia 6, ele foi celebrar com amigos e colegas de trabalho. Pouco depois da meia-noite, já no dia 7, o jovem começou a passar mal e, com os conhecimentos de socorrista que adquiriu na polícia, alertou os amigos que poderia estar sofrendo um derrame. Imediatamente, os amigos o levaram para a unidade de pronto atendimento (UPA) mais próxima.

O médico entendeu a situação como um “quadro psicológico” e o deixou em observação, apenas com um medicamento calmante, até por volta das quatro horas da manhã, quando ele teve alta e foi para a casa com a mãe.

Dona Nadir, que decidiu dormir no quarto com o filho caso tivesse qualquer imprevisto, no início da manhã teve que pedir socorro para uma família vizinha. Prontamente, eles foram buscar ajuda e encontraram dois policiais em uma padaria próxima à casa. Já com dificuldade de se movimentar e falar, Daniel foi levado ao Hospital Militar, onde fez uma bateria de exames, mas também não obteve uma resposta para o que estava acontecendo.

Ao precisar fazer uma ressonância magnética, para a qual não havia equipamento, o jovem foi transferido para o Hospital Luxemburgo. Lá, os profissionais sedaram e entubaram Daniel, com receio de prejudicar mais algum órgão. A partir daí, ele só soube do que contaram e o diagnóstico lhe foi apresentado quase 30 dias depois, quando despertou do coma: ele teve dois acidentes cerebrais vasculares (AVCs) isquêmicos, até então diagnosticados como tetraplégicos.

Quase um mês em coma induzido, dona Nadir escutava que o filho não acordaria e, se acordasse, ficaria em estado vegetativo. Passados 25 dias no Centro de Terapia Intensivo (CTI), os médicos retiraram a sedação e a transferência para a enfermaria começou a ser providenciada. No entanto, só se concretizaria se Daniel acordasse na manhã seguinte. Caso contrário, seria declarado o óbito cerebral.

“Os funcionários deduziam que aquela seria a última oportunidade para as pessoas mais próximas a mim me vissem com vida. Então, meus familiares e amigos tiveram a chance da visita. Foi permitido o acesso ao leito de todos que estavam presentes na entrada, aguardando o horário de me ver. Não posso precisar, mas, certamente, mais de 20 pessoas estavam lá”, conta Daniel.

A tensão e ansiedade de todos foi cessada com o despertar do jovem, que renasceu para “uma nova chance vida”, segundo ele. A lesão afetou a fala e os movimentos articulatórios de Daniel, que foi diagnosticado com a síndrome de encarceramento, “quando a pessoa perde a força muscular e não consegue realizar praticamente nenhum movimento. Os músculos da face que auxiliam na fala também ficam paralisados e os sentidos que permanecem são visão”.

A consciência e memória dele permaneceram e o único movimento a princípio eram dos globos oculares, na vertical. Nesse momento, Daniel só conseguia manifestar seus desejos e incômodos a partir de sorrisos ou do choro. Com a evolução, usava o piscar dos olhos para se comunicar. Uma vez para “sim” e duas para “não”. Aos poucos, pôde movimentar a cabeça e o pescoço para olhar ao redor. A alimentação a princípio era restrita e os nutrientes eram absorvidos por meio de sonda gástrica. A ingestão de água acontecia por meio de uma seringa, duas vezes por semana.

Três meses e meio se passaram e ele foi transferido para a Rede Paulo de Tarso, onde teria melhores condições para fisioterapia e a recuperação que necessitava. Enquanto isso, a mãe e os amigos realizavam uma rifa e divulgavam o caso de Daniel nas redes sociais, para angariar valores e adaptar a casa onde vivia para a nova realidade. Com a mobilização de todos, a reforma aconteceu e, no dia 13 de julho de 2015, foi liberado para ir para casa.

“Coisas simples e não valorizadas antes, como escovar os dentes, ir ao banheiro, me vestir sozinho ou mesmo realizar uma caminhadinha [com a ajuda dos amigos], tornaram-se grandes feitos nesse período […] A internet contribuiu positivamente para minha recuperação. Utilizava alguns aplicativos para me comunicar com outras pessoas, principalmente com meus familiares”, recorda Daniel.

Na época, o nome de Daniel já estava na lista da Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação e seis meses depois ele conseguiu uma vaga. Então, já no início de 2016, ele ficou por um mês, de segunda à sexta-feira, passando por uma reabilitação e aprendendo a fazer atividades do cotidiano sozinho, como tomar banho e trocar de roupa. Além de toda a recuperação na questão motora e de saúde, com fisioterapia e realização de exames.

No mesmo ano, Daniel passou por uma cirurgia, para colocar um “stent” no coração, uma espécie de tubo colocado dentro da artéria para mantê-la aberta e evitar a diminuição do fluxo sanguíneo e manter a oxigenação. “Os médicos acreditam que o orifício no coração é uma das possibilidades do acontecimento de todo mal. Ao fazer cirurgia, a possibilidade de um novo AVC causado pelo mesmo motivo, estaria excluída. Foi bem-sucedido, graças a Deus!”, explica.

Uma nova chance

Apesar do diagnóstico inicial de tetraplegia, os movimentos de Daniel iam voltando aos poucos, e o lado direito voltou mais rápido. Em casa, pouco tempo depois já conseguia tomar banho em pé e passado algum tempo trocou a cadeira de rodas por muletas.

Sem poder voltar a trabalhar, Daniel se dedicou à recuperação. Passou por diversos métodos terapêuticos, como hidroginástica, hidroterapia, equoterapia, pilates, natação, fisioterapia e fonoaudiologia. Até que encontrou uma se se sentisse bem e que observasse também um resultado positivo. Hoje ele faz fisioterapia específica de marcha e equilíbrio, assim como frequente academia de musculação.

Nessas idas e vindas das atividades que precisava para se recuperar, Daniel percebeu que tinha um grande gasto com deslocamento e se lembrou de uma palestra que assistiu enquanto estava na Rede SARAH, sobre os direitos que possuíam, inclusive a isenção de impostos na compra de automóveis zero quilômetro.

Como estava perto de renovar a carteira de motorista, foi até o Detran se informar de quais adaptações e processos precisaria passar para adquirir a nova habilitação. Assim, fez algumas aulas para se adaptar e conseguiu adquirir também o carro dentro dos direitos que passou a possuir. Com uma “vaquinha” online conseguiu o montante que precisava para a entrada e o valor que gastava mensalmente com carros de aplicativo, começou a pagar as parcelas do carro próprio.

Dessa forma, foi conquistando a autonomia para realizar as atividades sozinho, sem precisar da ajuda da mãe para tudo. E também a liberdade de fazer uma das coisas que mais gostava antes do AVC: dirigir. O que também passou a colaborar na recuperação. As chaves do veículo foram recebidas no dia 7 de dezembro de 2019, exatamente cinco anos após o ocorrido e dois dias após o aniversário de 34 anos. “Foi um valioso presente, este da nova vida e essa com Deus!”, garante.

Depois de dois anos afastado do cargo da PM, recebendo o salário normalmente, Daniel passou por uma perícia e foi reformado com uma aposentadoria. À época do acidente, a mãe, que possuía um salão de cabeleireiro, precisou deixar tudo para cuidar do filho, mas logo também conseguiu uma aposentadoria pela idade. O que ajudou a sustentar todos os gastos nos primeiros anos de recuperação.

A (re)significação do trauma 

Ainda quando internado na Rede Paulo de Tarso, Daniel teve acesso a um celular, onde anotava alguns marcos da recuperação, como uma primeira e breve caminhada da cama até a janela do quarto onde ficava. No bloco de notas, escrevia cada avanço da recuperação, os colegas de internação com quem convivia, os profissionais a quem tinha contato, além das visitas e dos cuidados que recebeu principalmente da mãe da Nadir, da tia Izaura e da então namorada Alice.

Daniel e Alice haviam terminado o namoro antes do acidente, mas retomaram a relação já no hospital. Com tantos acontecimentos e sentimentos para processar, o relacionamento de ambos chegou ao fim novamente, quando Daniel já não estava mais internado. No entanto, a ex-namorada, sempre mencionada com carinho por ele, foi uma das pessoas que colaborou durante toda a recuperação.

A relação com o pai, que passou a visitá-lo no hospital depois de mais de 15 anos sem contato, também é brevemente relatada. Com a ajuda do tio Luis e do primo Felipe, o genitor foi encontrado e informado do caso de Daniel. O pai se manteve presente durante o período de hospital, mas logo depois passou a não aparecer mais.

Nesse período, Daniel descobriu também uma nova paixão. “Sempre acreditei nos benefícios de manter a mente ocupada, então o que eu poderia fazer naquele momento era ocupar a minha mente e escrever”, conta.

Com a alta, em setembro de 2015, Daniel começou a rascunhar o que se tornaria a obra Encarcerado: Nem toda prisão possui grades. Título que remete à síndrome que se apresentou após o acidente. O objetivo era contar a própria história e, quem sabe, chegar a outras pessoas que pudessem estar passando pela mesma situação, como forma de incentivo e esperança de melhoria. “Um AVC não é o fim, a vida segue”, salienta.

“Eu tinha um computador de mesa, eu mesmo digitava. É claro que tinha dificuldade para uma letra ou outra. Digitava com as duas mãos, mas o movimento com a esquerda era bem mais lento. Ia catando uma letrinha ou outra, demorou um pouco, mas saiu”, lembra.

O processo de publicação não foi tão rápido quanto imaginava. A princípio contou com a ajuda de uma amiga professora, mas depois o próprio Daniel passou a buscar editoras e verificar as condições de cada uma, até que encontrou uma que agradou mais, a Becalete. Essa busca durou até 2022, e nesse meio tempo, Daniel pôde incluir também os acontecimentos que vieram a seguir.

Com recurso próprio, o autor investiu na tiragem inicial de 50 exemplares, alguns destes destinados a amigos e familiares que colaboraram na trajetória. Em abril de 2023, a campainha de casa tocou e quem recebeu a caixa pesada, recheada de livros, foi sua mãe. Uma surpresa, já que mesmo em contato, a editora não havia informado que estava a caminho. Hoje a obra é vendida sob demanda, e está disponível para compra pela internet, na versão física e também digital.

“Com a minha recuperação total, somente eu ficaria feliz – claro que meus familiares e amigos também. Porém não posso comparar à quantidade de pessoas que podem ser beneficiadas com o conhecimento da história narrada aqui. Deus já me deu condições físicas e mentais para divulgar o que Ele fez na minha vida. Dessa forma, levarei fé e esperança para assim fortalecer pessoas que enfrentam um momento semelhante ao que enfrentei, e venci!”, declara Daniel.

Do tempo em coma, só lembra das vozes durante as visitas ou os cuidados profissionais. De uma frase nunca se esqueceu e carregou apenas para si, até o lançamento do livro: “É, rapaz… você tem que valorizar as coisas simples da vida e os seus amigos”. O que Daniel internalizou e busca praticar todos os dias, até hoje.

A sonhada formação superior

Com o gosto pela escrita e no intuito de se manter mentalmente ocupado e saudável, Daniel decidiu ingressar em uma graduação que desenvolvesse a habilidade de escrever. Encontrou na modalidade a distância da Uninter a possibilidade de conciliar a rotina, somado a uma mensalidade acessível. Com a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ainda garantiu um desconto.

A princípio, iniciou o bacharelado em Jornalismo, que cursou durante dois módulos. “As disciplinas relacionadas à escrita me agradavam bastante, mas aquelas voltadas para o Jornalismo, eu não gostava muito”, conta. Chegou a tentar ainda o Design Gráfico, porque gostava de desenhar, mas também por um curto período. Foi então que surgiu a graduação em Letras. Ficou resistente, já que pensava na licenciatura e não tinha vontade de lecionar, até que se deparou com o bacharelado na área, ofertado pelo centro universitário.

“Estou gostando muito do curso. Me adaptei muito bem com a questão EAD, porque é mais difícil eu perder o foco, fico mais concentrado […] Sempre que procuro a tutoria, me atendem rápido, são bem acessíveis nas respostas, assim como a parte administrativa. O pessoal do Sianee [Serviço de Inclusão e Atendimento aos Alunos com Necessidades Educacionais Especiais] entra em contato, me respondem sempre sem demora também”, afirma.

Daniel agora tem vontade de desenvolver algum trabalho voltado para a questão do AVC, como, por exemplo, um canal no Youtube, para compartilhar o processo de recuperação e direitos civis.

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Autor: Sandy Lylia da Silva e Nayara Rosolen
Edição: Larissa Drabeski
Créditos do Fotógrafo: Acervo pessoal


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