Pesquisadores buscam decifrar o espírito do tempo da mídia

Autor: Arthur Salles - Assistente de Comunicação Acadêmica

Investigação biográfica e as relações entre mídia e tempo são os temas de duas novas publicações acadêmicas da professora de Jornalismo da Uninter Karine Moura Vieira (foto). No livro Crítica das práticas jornalísticas, a doutora em Ciências da Comunicação é autora do artigo “Sujeitos do biográfico: jornalistas e a construção do status de autoria na produção da biografia como reportagem”. A outra publicação, da qual ela é uma das organizadoras, busca captar o espírito do tempo da mídia.

O interesse pela observação do ato de retratar personalidades não é novo para Karine. A ávida leitura de biografias ganhou forma de trabalho pela primeira vez como um freelance às pesquisas do escritor cearense Lira Neto sobre a vida do marechal Castello Branco, primeiro presidente da ditadura militar brasileira. A obra foi publicada em 2004 pela editora Contexto, abrindo espaço para trabalhos posteriores.

A entrada no mestrado da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), em 2009, a permitiu explorar a fundo o processo da investigação biográfica no jornalismo. O trabalho foi feito em cima do livro Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão (Companhia das Letras, 2009), também de Lira Neto. Como o produto sobre a vida do líder religioso que fora excomungado da Igreja Católica já estava publicado, coube a Karine investigar os rastros de produção da biografia. Ela obteve acesso a todo material de pesquisa levantado por Neto e, a partir disso, desenvolveu um trabalho de crítica genética, de compreender o processo de origem da obra.

Logo na sequência, a tese de doutorado foi montada com base em entrevistas com jornalistas e biógrafos a respeito do gênero. “É uma área que me interessa muito, de entender as práticas jornalísticas, olhar aos processos de produção jornalística, para tentar entender como eles se dão e de que forma o jornalista atua”, conta Karine.

A pesquisa, com orientação da professora Beatriz Marocco, na Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), deu também origem ao artigo que agora faz parte do compilado de críticas às práticas jornalísticas. Publicado originalmente na Revista Observatório, em 2018, o texto traz entrevistas com nomes consagrados do jornalismo, como Alberto Dines, Mário Magalhães e Regina Zappa.

“Assim como eles, partilho do mesmo ofício, interesse e o gosto pelo narrar e a paixão por biografias, circunstâncias que me mobilizaram para a pesquisa sobre o fazer jornalístico na produção de biografias”, relata a autora em dado trecho do artigo. Karine é também coautora de outro trabalho no livro, escrito ao lado das pesquisadoras Nilsângela Cardoso Lima e da própria Beatriz Marocco. O texto trata de um estudo de caso sobre os dilemas entre autoria e visibilidade a partir do jornal carioca O Dia.

O livro é, em suma, uma coletânea dos trabalhos gestados pelo grupo de estudos em jornalismo da Unisinos e da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria) durante a última década sob orientação de Beatriz Marocco. Publicada pela editora FACOS-UFSM em junho deste ano, a obra encontra-se em livre acesso neste link.

O espírito do tempo encarnado na imprensa

Os fenômenos que dão forma à experiência humana, sejam eles de fruto valorativo ou simbólico, são em grande parte mediados pelos aparatos midiáticos. São dessas organizações, em que há a circulação de informação entre diferentes polos, que o contexto temporal de determinada época (o “Zeitgeist”, do alemão “espírito do tempo”) é apreendido por seus receptores.

Interessado em observar os entrelaçamentos dessas duas esferas, um grupo de pesquisadores em comunicação do Brasil levou a proposta a outros nomes dos estudos comunicacionais. O resultado é o livro Mídia e Zeigeist, lançado pela editora Insular em maio deste ano, que reúne ainda estudiosos da comunicação de Portugal e dos Estados Unidos.

Karine é uma das organizadoras da obra, ao lado de Ivan Bomfim, Basilio Sartor e Marcia Veiga da Silva. A obra, de 290 páginas e com a presença de 18 autores, está disponível para compra neste endereço.

Em entrevista à CNU (Central de Notícias Uninter), a professora da Uninter e Ivan Bomfim traçam alguns dos principais pontos da coletânea.

CNU – O que motivou o grupo organizador a reunir textos sobre as dimensões midiáticas e temporais?

Karine Moura Vieira – Eu sempre digo que a comunicação, o jornalismo, vive sobre o signo da complexidade, da questão de ser um símbolo da transformação. Então, a nossa ideia de pensar esse livro foi justamente pegar esse conceito de espírito do tempo. Até a professora Marcia Benetti, na apresentação dela, abre dizendo que escrever sobre o tempo que ainda transcorre é sempre um risco. A nossa ideia não é nada de definidor, é justamente da reflexão sobre algo que vemos apontado nesse momento, tentando avaliar o agora. O nosso atual Zeitgeist é muito complexo, e a gente quis reunir diferentes pesquisadores para poderem pensar isso, trabalhando diferentes perspectivas sobre essa questão.

CNU – Você também é autora de um dos artigos presentes na publicação, abordando a ausência de jornalistas do The Intercept Brasil no programa Roda Viva em que o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro foi o entrevistado, pouco tempo após as publicações do veículo sobre a Vaza-Jato. Comente um pouco sobre ele e a importância de sua investigação.

KMV – O artigo que eu, Basílio e Ivan produzimos é justamente um olhar sobre o jornalismo nesse sentido. Achamos interessante pensar nessa perspectiva, significativa desse tempo que vivemos. A gente tem um veículo independente, The Intercept Brasil, que foi responsável por uma das maiores reportagens da atualidade com a Vaza-Jato, e essa proposta que teve de trazer uma figura que está na centralidade num programa tradicional como o Roda Viva, numa emissora tradicional como a TV Cultura. Não houve nenhum representante desse grupo de jornalistas do Intercept na bancada. Isso, ao se tornar público, gerou uma crítica clara nas redes do Intercept e uma mobilização nas redes sociais, o que também é muito sinal dos nossos tempos, do público dialogando sobre jornalismo e questionando práticas jornalísticas tradicionais. Achamos esse exemplo muito significativo do jornalismo que estamos vivendo, desse confronto de “será que o jornalismo tem como ficar nas mesmas bases de sempre?”, “será que a gente tem que estar mais aberto para pensar justamente que os nossas erros são muito mais avaliados, muito mais expostos?” e de saber lidar com as críticas sobre as nossas práticas. Então, esse caso trouxe para pensarmos questões de um novo jornalismo com o jornalismo tradicional, essa mobilização nas redes sociais, no espaço público. O artigo tenta refletir um pouco sobre isso, e refletindo também a questão do campo do jornalismo, de como ele é atravessado por outros campos. Esses debates estão cada vez mais presentes no espaço público, e o jornalismo não está mais tão longe. Ele é criticado, repensado, e, infelizmente, também perseguido.

CNU – Num plano geral, qual é a relação entre mídia e o espírito do tempo?

Ivan Bomfim – São diversas relações. A gente não tem uma resposta só, e eu diria que cada um dos textos tenta elucidar essa relação a partir de uma perspectiva própria. De uma maneira geral, é que a mídia é a grande responsável pela nossa compreensão do contexto temporal do qual a gente vive. Uma sociedade cada vez mais interligada e global. Não são só aqueles elementos diretos, não é só a nossa família, não é só a nossa comunidade que importam. Vemos, no dia a dia, o compartilhamento de valores, modas que se tornam mundiais, mas não só nesses aspectos. O próprio jornalismo, que tem as suas motivações locais, mas com uma compreensão mundial do que é o jornalismo, do que é cultura. Isso tudo faz com que a gente tenha uma ideia dessa relação entre mídia e espírito do tempo. As mídias, ao trabalharem com valores, com representações de mundo, com determinadas verdades, ajudam a moldar aquilo que tem por nossa experiência temporal. Nossa experiência de vida, aquilo que a gente entende como o que é importante na realidade. É muito diferente o mundo de trinta anos atrás do que ele é hoje. Numa situação política debatida à época, como o fim do comunismo nos países soviéticos, tudo tinha uma indicação do que o mundo seria agora. Um só sistema econômico, como a gente teria agora, trinta anos depois. É um mundo completamente diferente daquilo que a poderíamos ter imaginado. Vemos, por exemplo, nessa situação do capitalismo, que ele não se tornou um sistema política e economicamente hegemônico. Ele é cheio das suas contradições, e a história não se resolveu. Francis Fukuyama, no finalzinho dos anos noventa, dizia que ali era o final da história, já que o motor da história tinha acabado. E vemos agora que aquele era o espírito do tempo naquela época. “Ah, o capitalismo venceu e agora chegamos ao fim.” A gente vê hoje que não, na verdade, a história é muito mais do que só um sistema econômico, e o próprio sistema político que ele traz é muito contraditório e que as situações estão longe de serem definidas. Então, pensando nessa situação, podemos ver a relação entre mídia e espíritos do tempo que ajudam com que a gente compreenda quais são os valores de uma época.

CNU – Qual a importância de pesquisadores, estudantes e acadêmicos em geral em conhecerem mais dessas relações?

IB – No sentido de entenderem o que os molda, do que influencia a realidade. Nós somos um produto do nosso tempo, não existe ninguém que seja a frente do seu tempo. Acho que isso é muito importante destacar. E quando entendemos a relação entre a nossa perspectiva existencial, temporal, com as mídias, como elas são produzidas, que valores elas representam, o que elas contestam, isso fica muito exposto. As mídias estão no cerne da forma com que a gente se entende e entende o próprio tempo. Produtos midiáticos anteriores que podemos achar engraçados às vezes justamente porque eles representavam, davam voz e eram constituídos por crenças, valores e estruturas, de pensamentos que não são os quais a gente hoje compartilha.

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Autor: Arthur Salles - Assistente de Comunicação Acadêmica
Edição: Mauri König
Créditos do Fotógrafo: Divulgação


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