Pesquisadora explica por que é importante fazer estudos de gênero
Os estudos de gênero estão crescendo nos últimos anos e com ele uma nova maneira de encarar desigualdades entre homens e mulheres, que muitas vezes foram naturalizadas por diversas sociedades. Muitos são os motivos para se estudar gênero no Brasil e no mundo. Os altos índices de violência contra a mulher desigualdade econômica, feminicídio, transfobia, são alguns exemplos para a importância da ampliação dos estudos nessa área.
Uma de suas características principais é a interdisciplinaridade, que possibilita ampliar os temas de pesquisa. Diversas áreas do conhecimento, como Ciências Humanas, Ciências da Comunicação, Ciências Sociais, Ciências da Saúde e Direito, por exemplo, estão produzindo conhecimento com o olhar voltado para os estudos de gênero.
As pesquisas são fundamentais, pois identificam a raiz de problemas sociais e, com seus resultados, propõem reflexões, debates e políticas públicas que podem viabilizar mudanças para uma sociedade mais igualitária.
Para falar sobre pesquisa de gênero, comunicação e jornalismo, conversamos com a doutora em Comunicação e Linguagens, professora do Curso de Jornalismo e coordenadora do novo grupo de pesquisa Comunicação e Gênero: a circulação de discursos midiáticos na rede social Facebook da Uninter, Máira Nunes.
Uninter Notícias – Qual a importância dos estudos de gênero dentro da área da Comunicação?
Máira Nunes – A pesquisa sobre gênero e sexualidade ainda não está consolidada no campo da Comunicação Social, apesar de notarmos um aumento significativo no número de trabalhos publicados sobre essa temática. Um ponto importante que devemos pensar é o fato de que as práticas e os processos comunicacionais são parte integrante da nossa construção identitária e, portanto, devem ser constantemente analisados, criticados e reformulados para que possamos superar os estereótipos e a desigualdade de gênero.
UN – As redes sociais, sem dúvida, são os mecanismos mais importantes para as mobilizações políticas de maneira geral. Como você enxerga os movimentos feministas na web? Eles estão consolidados?
Máira – As redes sociais foram um importante fator de mobilização feminista nos últimos anos. Da mesma forma, tem possibilitado a circulação e visibilidade de temáticas que até então não eram discutidas pela sociedade em geral. Pautas como violência doméstica, abuso, desigualdade salarial, exploração, racismo, entre outras, eram vistas como sendo algo da esfera privada, e não pública. A ampliação da produção de conteúdos que falam sobre esses problemas possibilitou que as mulheres percebessem que são problemas comuns a todas e não apenas a algumas. Os movimentos feministas, que já estavam presentes na sociedade brasileira desde o século XX, ganham então um novo fôlego, sendo reconhecido como uma forma de mobilização e ação política fundamental para as mulheres.
UN – Junto com essa popularização do feminismo e de suas reivindicações nas redes sociais surge, também, o contra-ataque por parte de haters (pessoas que são opositoras e tendem a ter reações violentas e agressivas) e tentam difamar mulheres e movimentos que buscam a igualdade de direitos. Até que ponto esses ataques podem prejudicar as mobilizações feministas? Você acredita que esses ataques são frutos do desconhecimento da agenda feminista?
Máira – A figura do hater está presente desde os primórdios da internet. O que podemos perceber é que as pautas identitárias, ao ganharem mais visibilidade, intensificaram os discursos de ódio e acirraram a violência (na rede e fora dela). Casos como o recente massacre de Suzano chamam a atenção para a relação entre as tecnologias da rede e o que ficou conhecido como “masculinidade tóxica”. Para determinado grupo de pessoas (homens, brancos, cisgêneros e heterossexuais) o avanço social conseguido pelos grupos subalternos representa uma ameaça ao lugar que essas pessoas sempre ocuparam na sociedade. Não é apenas um efeito das redes, mas é um fenômeno que certamente é amplificado por elas. A luta feminista representa uma dessas ameaças, pois mulheres que se colocam frente às opressões de gênero ameaçam essa masculinidade hegemônica. São meninas e mulheres que não se submetem mais aos desejos do homem, que buscam autonomia e relações nas quais exista respeito. Para muitos homens, isso representa uma perda de poder. Precisamos lembrar que os papeis de gênero foram construídos historicamente e que, em muitos casos, ainda há uma forte presença da ideia da hierarquização de gênero, de que mulheres são inferiores aos homens e, por isso, devem submeter-se a eles. Não acredito que haja um desconhecimento da agenda feminista (mesmo que tenhamos várias agendas diferentes, de acordo com cada vertente feminista), mas sim uma disputa de poderes (econômicos, políticos, sociais, simbólicos) de homens que não querem que as mulheres avancem.
Masculinidade Tóxica: Pode ser definido como o conjunto de atitudes e qualidades que são atribuídas aos homens em forma de estereótipo, tais como “homem não chora”, “brigar é coisa de homem mesmo” e outros.
Cisgêneros: São aquelas pessoas que se identificam com o gênero com o qual nasceram. Pessoas cisgêneros podem ser hétero ou homossexuais.
UN – A representação da mulher nos meios de comunicação sempre teve estereótipos que reforçam e impõe padrões de beleza e comportamento, mas isso vem mudando. Nos últimos anos vemos propagandas publicitárias menos sexistas e com representação de corpos e etnias mais diversificados. Você acredita que essas mudanças foram conquistadas através de reivindicações e pressões do público feminino através das redes sociais?
Máira – Acredito que a pressão social tem um importante papel nessa mudança, mas não é o único fator. Há bastante tempo tem-se estudado o efeito washing (pinkwashing, greenwashing, etc.) que é a forma como o sistema capitalista incorpora pautas sociais e as transforma em produtos a serem consumidos. O femvertising é um desses fenômenos, nos quais as marcas decidem mudar seu posicionamento amplificando o discurso do empoderamento feminino. É importante, obviamente, que haja essa transformação, principalmente porque a mídia hegemônica tem há muito sido responsável pela manutenção de estereótipos extremamente nocivos aos grupos subalternos. Mas é importante que observemos esse fenômeno de maneira crítica, pois o empoderamento via consumo apenas mascara fatores de desigualdade.
Pinkwashing: Um tipo de washing onde se usa a pauta LGBTI.
Greenwashing: Quando se usam as pautas sustentáveis e ecológicas.
Femvertising: Junção das palavras femenism (feminismo) e advertising (publicidade), é um tipo de propaganda com conteúdo feminista, empoderador para as mulheres e que geralmente quebra padrões de gênero.
UN – A imprensa tem um papel fundamental para a construção de uma sociedade mais igualitária, mas, muitas vezes, ao noticiar violência de gênero, tende a reforçar discursos que culpabilizam as vítimas, como é possível mudar esse quadro?
Máira – Temos que nos lembrar, primeiramente, que a imprensa faz parte do espectro social e, portanto, compartilha da mesma visão de mundo. Se o Brasil tem como característica uma formação colonial, patriarcal e escravocrata cuja cultura se perpetua enquanto prática social, é de se esperar que a imprensa também reproduza essa cultura. No entanto, as relações sociais (e mesmo os processos históricos) não são estáticas e, nesse momento, vivenciamos um importante processo de tensionamento no qual essas forças conservadoras estão sendo pressionadas. Acredito que a ampliação do debate seja fundamental, em todas as instâncias sociais, bem como uma pauta de educação não sexista, que desnaturalize a violência de gênero. Enquanto ainda tivermos pessoas que acham que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, ou como afirmava Nelson Rodrigues “toda mulher gosta de apanhar”, teremos esse discurso culpabilizador. E, principalmente, é preciso denunciar – o tempo todo. Não apenas a violência, mas também a violência discursiva.
UN – “Comunicação e Gênero: a circulação de discursos midiáticos na rede social Facebook”, esse é o nome do novo projeto de pesquisa da Uninter, que está sobre a sua coordenação. Você poderia nos explicar um pouco sobre o projeto e os seus objetivos? Qual a sua expectativa em relação ao projeto?
Máira – O projeto pretende discutir, a partir da análise da circulação de discursos midiáticos no Facebook, quais são as características desses discursos. A proposta é identificar produtos publicitários e jornalísticos que são compartilhados por páginas da militância identitária e observar a construção discursiva presente nesses produtos. O que temos percebido, e foi um dos motivadores do projeto, é que há uma reiteração de discursos machistas, culpabilizantes, homofóbicos e racistas por meio dessas páginas. Com a intenção de denunciar a produção de conteúdos preconceituosos, acaba-se ampliando a visibilidade e a naturalização desses discursos. A finalidade, portanto, é traçar um diagnóstico sobre essa circulação, a partir das propostas individuais das pessoas que estão participando da pesquisa. Cada estudante irá desenvolver um projeto individual, centrado na publicidade ou o jornalismo, discutindo esses aspectos da circulação discursiva a partir de um objeto de pesquisa específico.
Militância Identitária: Grupos que lutam pelos direitos de um grupo identitário (que se reconhece em uma determinada identidade), sejam eles LGBTI, negros, refugiados, mulheres e outros.
Autor: Juce Lopes e Ariadne Körber - Estagiárias de JornalismoEdição: Mauri König
Créditos do Fotógrafo: Juce Lopes - Estagiária de Jornalismo
Parabéns à Uninter pelo debate necessário e transformador social.