O olhar humanizado por meio do ciclismo

Autor: Evandro Tosin - Assistente de produção multimídia

Pedalar é mobilidade, um exercício de liberdade. O ato de andar de bike pode ser uma aventura, promovendo o contato com a natureza, ou simplesmente um meio de transporte para ir de casa para o trabalho. Atividade que faz bem ao corpo e à alma. Mas também pode representar um ponto de vista através da fotografia e chamar a atenção para assuntos de interesse social e coletivo. Isso está presente no movimento Ciclo-Olhar, composto por ciclistas de vários locais do Brasil que fotografam momentos de lazer e do cotidiano.

A ideia consiste em tirar fotos em parceira com a bicicleta, incorporando o hábito de pedalar à paisagem. As fotos são então publicadas no perfil do Instagram Ciclo-Olhar, que neste ano promove um concurso cultural com a temática “Bicicleta, substantivo feminino, mulher, ser humano como você”. Em 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, será escolhida a melhor foto, que ganhará uma placa com o tema do concurso.

A ação quer chamar a atenção para o debate de temas como feminicídio, violência psicológica, equidade, dignidade, trabalho, respeito, políticas públicas, saúde. De acordo com o relatório Violência Doméstica, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), durante a Pandemia de Covid-19 o número de ocorrências de violência contra a mulher no Brasil vem aumentando muito.  Casos de feminicídio, por exemplo, aumentaram 22,2%.

Na visão de Chris Carlsson, que é historiador e viajante, conhecido por ser um incentivador da cultura do uso da bicicleta, “Pedalar é um ato político”.

A iniciativa do projeto Ciclo-Olhar é de Dado Galvão, documentarista e morador de Jequié (BA), estudante de Bacharelado em Teologia Católica no polo da Uninter de Vitória da Conquista (BA), na modalidade de educação a distância.

“É raro você encontrar um ciclista que pedale e não fotografe. Pela facilidade do celular, ele vai revelando uma cidade até então desconhecida, uma cidade mais humana, com outro olhar e sensibilidade”, relata. Galvão já participa de ações de cicloativismo há seis anos.

A página Ciclo-Olhar, no Instagram, já recebeu mais de 2 mil fotos de diversos locais do país. As fotografias expressam paisagens, descontração, momentos de fé, superação pessoal, solidariedade e igualdade. Para saber como participar do concurso e enviar sua foto, clique aqui.

Mobilidade, superação e fé

Em uma de suas pedaladas à noite por Jequié, cidade com 160 mil habitantes no sudoeste do estado da Bahia, Galvão conheceu a pedagoga e cadeirante Andréa Correa, que percorria o município com sua bike adaptada com o “Kit Livre”, acessório elétrico que é acoplado à cadeira de rodas. Sua foto também está no perfil ciclo olhar.

A trajetória de Andréa, que nasceu com uma doença chamada osteogênese imperfeita, conhecida como “ossos frágeis”, foi retratada no documentário Rodas da Liberdade. Ela costumava fazer seus trajetos de táxi, porém em 2018 decidiu mudar e passou a utilizar um meio de transporte próprio. Andréa, que é funcionária pública, decidiu ocupar os espaços em vias públicas para se locomover pelo município com sua cadeira adaptada, o que inspirou outros ciclistas pela sua coragem.

Galvão percebeu uma relação entre o hábito de pedalar e relatos de evolução na qualidade de vida das pessoas. O ciclo olhar propõe enxergar a cidade e o próximo de uma forma mais humanizada. “A bicicleta é mais do que nunca o veículo do futuro, está presente no cotidiano das mais variadas cidades e classes sociais do Brasil e do mundo, andar de bicicleta vai muito além”, relata o documentarista.

Ele ainda destaca a aproximação do ciclismo com a Teologia Católica. Por meio de experiências em grupos de pedais, conheceu relatos e testemunhos de fé, além de observar o impacto positivo da bicicleta na vida de seres humanos.

O retrato das desigualdades sociais pelo pedal

Durante uma pedalada pela BR-116, próximo à Comunidade Duas Irmãs, na zona rural de Manoel Vitorino (BA), às margens da rodovia é comum ver pessoas pedindo esmola. Ali Galvão retratou uma mãe-adolescente, com 15 anos de idade e um bebê no colo.

No local, famílias inteiras pedem esmolas. Muitas vezes são vítimas de exploração sexual, por conta da miséria e da vulnerabilidade social. “Esse lugar sempre me chamou atenção: ali estão transitando as riquezas do país e ao mesmo tempo, muita pobreza”, lembra Galvão.

Segundo o IBGE, são 13,5 milhões de habitantes no Brasil com renda mensal per capita inferior a R$ 145, valor definido pelo Banco Mundial como índice de extrema pobreza. Esse número é maior do que a população total de países como Guiné, Paraguai, Honduras, Ruanda e Bélgica. O percentual aumentou de 5,8%, em 2012, para 6,5% em 2018.

As placas de papelão

Na manhã de 27.ago.2020, Galvão foi ao supermercado e na Rua Brigadeiro Sá Bittencourt, bairro do Jequiezinho, em Jequié, cidade do interior baiano, encontrou um recado que era uma expressão de cidadania: “Respeite os ciclistas. Tá com pressa? Vai de Bike” (assista ao vídeo produzido por ele).

Por ser uma cidade do interior, Jequié não tem uma estrutura voltada para o ciclista. O pedido anônimo estava numa placa artesanal de papelão, fixado em um poste.  É a demonstração de um sentimento coletivo, algo simples, um outdoor de papelão.

“Ciclistas precisam enxergar ciclistas. É necessário que os grupos de ciclismo local exerçam papel coletivo de cidadania e pressão social, exigindo políticas públicas, leis, incentivo para os usuários de bicicletas, com ou sem uniforme, com ou sem capacete, da barra circular ao carbono, da fábrica ao ciclo-turismo, do operário ao doutor. A magrela está em todos os lares e desconhece fronteiras. O poder de mobilização existente nos coletivos de pedais deve estar a serviço do bem comum de todos os ciclistas e da cidade. Se assim não acontece, ficaremos a cada pedalada distantes da cidadania, na cidade de placas de papelão”, relata o cineasta.

O estudante ainda lembra da importância do uso de equipamentos básicos de proteção: luvas, capacete, sapatos e kit iluminação. “Nós sabemos que a bicicleta faz bem para a saúde, é uma ferramenta de lazer e de transformação social, e se a gente começar a pedalar, a mostrar para a cidade e os motoristas que a gente está pedalando com dignidade, nós vamos criar uma cultura e provocar para que possam nascer políticas públicas voltadas ao ciclista e pessoas com limitação de mobilidade”, explica.

Crescimento das vendas durante a pandemia

Segundo a Associação Brasileira do Setor de Bicicletas, as vendas cresceram 118% durante junho e julho desse ano, em comparação ao mesmo período de 2019. Em maio, o aumento registrado foi de 50%. O crescimento se dá pelo fato de que a população tem evitado aglomerações no uso do transporte público.

A bicicleta tem um valor acessível em relação a outros meios de transporte, como motocicletas ou carros, além de contribuir com o meio-ambiente.  De acordo com a Aliança Bike, as bicicletas mais escolhidas foram os modelos mais básicos, entre os preços de R$ 800 a R$ 2 mil.

O país é o quarto maior produtor de bicicletas no planeta, com produção anual que ultrapassa 4 milhões de unidades. Em 2017, o número de bicicletas no Brasil era de 50 milhões, contra 41 milhões de carros. Hoje a estimativa é que temos 70 milhões de bicicletas, de acordo com a Abraciclo. Entretanto, o número percentual de viagens realizadas nos 5.570 municípios brasileiros é ainda pequeno: apenas 3% dos deslocamentos são feitos em cima da magrela. Ou seja, está na hora da população brasileira adotar o pedal.

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Autor: Evandro Tosin - Assistente de produção multimídia
Edição: Mauri König
Revisão Textual: Jeferson Ferro
Créditos do Fotógrafo: Perfil Ciclo Olhar e Dado Galvão


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