O nascimento do anti-herói na sociedade
Autor: Leonardo Tulio Rodrigues - estagiário de jornalismoNa arte, assim como na vida, as nuances nas relações entre individuo e sociedade se misturam facilmente, criando um contexto social amplo e ambíguo. Violência, negligência e desigualdade são exemplos de aspectos sociais que podemos observar em sociedade com o auxílio de importantes ferramentas.
Obras audiovisuais, por exemplo, nos ajudam a entender melhor a realidade em que estamos inseridos. Personagens nos apresentam diferentes visões de mundo em diversos contextos e nos fazem compreender um pouco mais sobre uma categoria que retrata a linha tênue entre civilidade e barbárie, os anti-heróis.
Presente também em obras literárias, a figura do anti-herói gera debates acerca de questões morais e éticas que permeiam toda nossa sociedade. De acordo com o artigo “O Anti-herói e o constrangimento de defendê-lo”, a figura tem ligação direta com a sociedade que vivemos. O artigo é de autoria do mestrando em Direito pela Uninter Paulo de Tarso de Oliveira Tavares e foi publicado pela Revista Intersaberes da Uninter.
O termo anti-herói, como apresentado pelo autor, designa aquele que perturba e, ao mesmo tempo, cria empatia com o espectador, ao conciliar características boas e más, defeitos e qualidades, que podem ou não ser equivalentes aos do espectador normal.
Paulo escreve que “O anti-herói vive no equilíbrio entre virtudes e defeitos da conduta moral. Estes personagens podem levar o público a ter dificuldade em separar herói e anti-herói”. Pelas mãos do autor observamos uma intrigante análise sobre o nascimento desse tipo de persona que amedronta e encanta o público ao mesmo tempo.
Na tela da TV
A série Narcos, produzida e exibida pela Netflix entre 2015 e 2017, apresentou ao público um grande exemplo de anti-herói da vida real. A história real dos esforços dos Estados Unidos e Colômbia para combater o cartel de Medellín tornou a figura de Pablo Escobar famosa em todo o planeta.
Na ficção, Escobar foi interpretado pelo ator brasileiro Wagner Moura. A trama retrata a ascensão dele de um criminoso comum para um dos homens mais perigosos, procurados e ricos do mundo. Amado por uns e odiado por outros, o líder do cartel de Medellin fazia obras em áreas periféricas da cidade e dava dinheiro aos pobres como forma de conquistar a simpatia e coagir a população a não o denunciar.
Outro exemplo é o caso da série Impuros (2018), o personagem Evandro do Dendê, inspirado em Fernandinho Guarabu, líder comunitário e dono de um dos maiores arsenais do crime do morro do Dendê, na Ilha do Governador (RJ), entra para o crime organizado em busca de vingança.
Interpretado pelo ator Raphael Logam, o personagem inicialmente é um jovem da favela carioca cujo principal objetivo, ao fazer 18 anos, é ganhar o próprio dinheiro de forma honesta. Mas tudo muda quando seu irmão, atuante no tráfico da região, é morto por policiais.
Evandro decide se vingar e mata os responsáveis pelo tal assassinato, ganhando notoriedade dentro da hierarquia do comando. Durante 15 anos, ele comandou o tráfico e era um dos nomes mais procurados pela Justiça do Rio de Janeiro.
De acordo com o aluno, o enredo das séries e a trajetória dos personagens fomentam a reflexão sobre as nuances das personalidades e da ação dos indivíduos, assim como possibilitam a identificação dos protagonistas das séries como anti-heróis, os quais podem gerar empatia por parte do público.
Essas personalidades despertam interesse justamente por não serem heróis. São ambíguos, humanos, passíveis de erros e de desvios morais e éticos, tendo em vista suas ações que extrapolam o campo da criminalidade e daquilo que é socialmente reprovável.
A professora Titular de História do Cinema e do Audiovisual da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) Esther Hamburguer, citada no artigo, defende que a identificação entre personagem e público está atrelada ao papel das produções audiovisuais na construção do imaginário social sobre a temática da violência e suas implicações políticas e estéticas.
O modo de tratamento estético de práticas criminosas, como no caso das séries analisadas, é considerado por alguns como uma glamourização moralmente indefensável destas práticas. A identificação do público com esses personagens é, na verdade, a identificação com os dilemas morais dos personagens sob o olhar glamourizado criado pelas produções audiovisuais.
Outro ponto que colabora pela criação de empatia entre o anti-herói e outras pessoas é o fato de muitas vezes ele ser responsável por fazer ações humanitárias em benefício da comunidade. Este é o caso dos personagens analisados por Paulo Tarso em seu artigo. Essa perspectiva humaniza e legitima a ação do anti-herói em meio a sociedade.
O surgimento do anti-herói
Para compreender a ligação dos personagens das séries com a figura real e a realidade que os permeia, o autor recorre à chamada Sociologia da Violência, que apresenta uma perspectiva crítica sobre os efeitos de uma civilização que reprime os sujeitos, mas não é eficiente em retribuir para alguns grupos a segurança e direitos esperados.
O nascimento do anti-herói clássico na realidade está atrelado à violência gerada pela negligência, aponta o artigo. O desamparo do sujeito no campo social fortalece a produção da violência tanto no contexto social mais amplo, quanto nas demais relações individuais.
Na concepção de Paulo, o crime e a violência são consequências das violações de direitos dentre as quais podemos citar a existência de favelas, comunidades e zonas das cidades nas quais a presença do Estado e a promoção de direitos é quase inexistente.
Ele argumenta que as falhas no cumprimento dos direitos fundamentais resultam em desigualdades, discriminação e marginalidade que podem ser caracterizadas como violações à dignidade de pessoa humana.
A correlação direta entre desamparo e violência também está presente na obra de Alex Erno Breunig (2018). Segundo o teórico, uma das explicações para as altas taxas de criminalidade seria a ocorrência de uma crise ética na sociedade brasileira.
Sendo assim, a barbárie representada pela figura do anti-herói é gerada pela ineficiência do Estado, das instituições de controle social e da burocracia que podem favorecer a violência. A partir de sua análise, Paulo chegou à conclusão de que certos sujeitos e grupos são contemplados pelas benesses do suposto processo de civilização.
A realidade na qual os personagens das séries estão inseridos é muito similar à realidade atual em todo o brasil. A violência se mantém em alta, tanto por parte de civis como pela força policial. Segundo o relatório da Anistia Internacional de 2020, 888 pessoas foram mortas pela polícia no Estados Unidos.
No mesmo ano, a polícia matou 6.416 pessoas no Brasil. Do total, mais da metade eram jovens negros. “São desproporcionalmente atingidos pelos processos de repressão e violência institucionalizadas”, escreve o autor.
Autor: Leonardo Tulio Rodrigues - estagiário de jornalismoEdição: Larissa Drabeski
Créditos do Fotógrafo: Colombian National Police