O esporte como espaço de manifestações político-ideológicas
Autor: Arthur Salles e Maurício GeronassoO esporte é utilizado desde a Antiguidade como veículo de manifestação social e política. Seus intentos, além do culto ao corpo e ao desempenho físico, se punham como preparação militar e assentamento de paz entre as cidades-Estados gregas. Essas são as origens dos jogos olímpicos, e, apesar da mudança em seus propósitos, a postura dos atletas atuais em campos e em quadras são vozes de reinvindicações sobre acontecimentos do cotidiano, que ganham olhos maiores em relevância e visibilidade.
Sendo o maior evento esportivo do planeta, é esperado que as Olimpíadas sirvam de palanque a discursos que ultrapassam a redoma olímpica e contagiam a sociedade. Este ano não foi diferente, valendo-se de certo respaldo do próprio COI (Comitê Olímpico Internacional). A abertura de precedentes por parte da entidade para os jogos olímpicos de Tóquio prezou pelo constante engajamento de atletas com causas de justiça social e combate a intolerância, permitindo gestos de cunho ideológico antes das provas e com respeito aos outros participantes.
A Regra 50 da Carta Olímpica, ainda que flexibilizada, continuou coibindo manifestações durante a subida dos atletas ao pódio. “O pódio e as cerimônias de medalha não são feitas para uma manifestação política ou outra”, disse o presidente do comitê, Thomas Bach, ao jornal britânico Financial Times. “Ele é feito para homenagear os atletas e os vencedores de medalhas por conquistas esportivas e não por suas visões particulares.”
O entendimento é endossado por parte dos competidores, de acordo com a organização, que realizou uma pesquisa com 3.547 atletas de 185 comitês olímpicos nacionais: 70% diz não aprovar o uso da cerimônia como espaço de manifestações políticas, enquanto 67% dos desportistas se disseram contra gestos no pódio. O regulamento e o estudo, no entanto, não impediram que a arremessadora de peso norte-americana Raven Saunders cruzasse os braços em X em prol dos oprimidos após receber a medalha de prata. Mulher, negra e lésbica, a atleta motivou investigação do COI, mas logo suspensa pela entidade.
Os protestos puderam ser estendidos a áreas de concentração prelimitadas, coletivas de imprensa e em redes sociais, compreendendo, em parte, a essência política do ser humano. É de sua organização em sociedade que a política floresce e vice-versa. Não seria difícil considerar que, assim como as demais ações da vida, a política e sua expressão fizessem parte do esporte e se utilizassem dele como um propulsor para debates. Como explica a professora do curso de Educação Física da Uninter e doutora em Ciências da Atividade Física e do Esporte Katiuscia Mello Figuerôa, “a política é tudo, e nós somos seres políticos a todo momento”.
A edição dos jogos deste ano foi marcada desde a sua abertura por gestos, mesmo que pequenos, de importante representatividade e quebra de paradigmas. Naomi Osaka, tenista negra e japonesa em um país que não reconhece a presença da negritude em seu território, foi a responsável por acender a pira olímpica. Homossexual, o nadador britânico Tom Daley dedicou sua medalha de ouro à comunidade LGBTQIA+. O brasileiro Douglas Souza, da seleção masculina de voleibol, tornou-se o primeiro jogador de alto rendimento da modalidade assumidamente gay.
A aceitação pela primeira vez na história de uma atleta transgênero, como foi o caso da halterofilista neozelandesa Laurel Hubbard, e a suspensão da corredora sul-africana Caster Semenya, que por questões naturais tendem à produção de níveis altos de testosterona, reacenderam o debate em torno de questões fisiológicas e morais na competição entre gêneros.
As Olimpíadas e o esporte em sua totalidade continuarão sendo palco de atos político-ideológicos. A visibilidade e a força carregadas por essas mensagens tornam os atletas figuras emblemáticas nas lutas travadas por minorias, de vozes abafadas diante de uma sociedade desigual e intolerante.
O tema foi abordado no programa Fato-ruptura de 30.jul.2021, da Rádio Uninter, com participação de Katiuscia e mediação de Mauri König e Arthur Salles. Para conferir o programa na íntegra, clique aqui.
Dez manifestações que abalaram o mundo
Como pontuado, o uso do esporte como meio de expressão social não é recente. Somente as Olimpíadas datam 776 anos anteriores a Cristo. Os jogos da era moderna, a partir do final do século 19, acompanharam momentos decisivos da história em que a competição esportiva também servia de arena entre diferentes disputas ideológicas. Listamos abaixo dez momentos desses, dentro e fora dos jogos olímpicos.
1. Afirmação racial frustrada
As Olimpíadas de Berlim, em 1936, eram o momento ideal para que o chanceler nazista Adolf Hitler colocasse em prática seus ideais racistas e higienistas. A superioridade ariana, defendida pelo ditador e seus asseclas, foi posta à prova na competição. A Alemanha liderou o quadro final de medalhas, mas a atenção voltou-se para outro fato: o velocista negro e norte-americano Jesse Owens conquistou quatro medalhas de ouro em salto em distância e corrida. Além de superar recordes à época, o feito foi veiculado por forças opositoras ao arianismo como desmitificação da tese. A curiosidade é que Owens trocou acenos com Hitler durante os jogos, enquanto o presidente americano Franklin Delano Roosevelt jamais o cumprimentou pelas conquistas.
2. Uma nação de negros para negros
O boxeador norte-americano Cassius Clay é considerado até hoje o maior nome do esporte. O pugilista abandonou o nome de batismo (e de ascendência escrava) pela espiritual alcunha de Muhammad Ali. A troca fazia parte de sua conversão ao islamismo sob a guarda da Nação do Islã, grupo político atuante nos Estados Unidos que seguia fundamentalmente o Alcorão e buscava melhores condições de vidas aos negros por meio de uma nação supremacista. A aproximação ocorreu na década de 1960, auge dos movimentos de direitos civis dos negros norte-americanos, e culminou com a negativa de Ali a ser convocado para a Guerra do Vietnã, em 1966. A recusa, justificada como conflitante com sua religião e favorável às condições dos vietnamitas, custou o cinturão e pena de cinco anos de prisão ao desportista.
3. Pódio em riste
Se hoje o COI tolera em certa medida atos políticos durante a entrega de medalhas, as Olimpíadas de 1968, na Cidade do México, testemunharam outra postura da organização. Os negros norte-americanos Tommie Smith e John Carlos (foto), medalhistas de ouro e bronze nos 200 metros rasos, fizeram da consagração o seu banimento do esporte. Ambos elevaram os pulsos ao alto no pódio para divulgar suas plataformas de igualdade e denunciar diferenças de tratamento que existiam apenas com base na cor da pele, utilizando-se do símbolo do partido dos Panteras Negras, organização política revolucionária americana. Os detalhes por eles pensados nos uniformes e gestos tinham como objetivo expor uma ferida aberta na sociedade.
4. Brasil, ame-o ou deixe-o
A seleção de futebol da Copa do Mundo de 1970 é apontada por muitos como o escrete mais habilidoso de todos os tempos. O time de estrelas, porém, é também reconhecido por sua apropriação política pela ditadura militar brasileira. O ditador Emílio Garrastazu Médici viu em Pelé e companhia a oportunidade de estímulo ao patriotismo do então recente regime no país. O comunista João “Sem Medo” Saldanha foi sacado do comando da seleção a dois meses da competição e a equipe de preparação e monitoramento dos atletas que foram ao México era composta em boa parte por militares. Foi também na primeira Copa a ser exibida ao vivo na televisão que foi cunhado o slogan “Pra frente, Brasil”.
5. Setembro Negro, 1972
Os jogos olímpicos de Munique, em 1972, ficaram marcados pela disputa entre israelenses e palestinos de forma trágica. O conflito, que se arrastava por quase três décadas, viu na ação do grupo militante palestino Setembro Negro o acirramento da disputa política, territorial e religiosa entre os dois Estados. A organização foi responsável pelo sequestro e assassinato de 11 atletas olímpicos israelenses. Ao todo, entre israelenses, palestinos e seguranças alemães envolvidos no atentado, 17 pessoas foram mortas na vila olímpica daquele ano.
6. Democracia corinthiana – e brasileira
O Corinthians passou por uma reformulação em seu quadro de dirigentes em 1982. Os novos cartolas prezavam em ouvir as reinvindicações de seus atletas, que exigiam maior participação nas decisões administrativas do clube, dentro e fora de campo. O movimento logo extrapolou os quatro corners e encampou uma luta por liberdade e democracia em plena ditadura militar. A expressão “Democracia corinthiana” estampava as camisas de jogadores como Sócrates e Casagrande, que logo apoiaram as campanhas de Diretas Já no momento de transição do regime militar para o democrático no Brasil.
7. Apartheid da bola
A África do Sul passou pela segregação racial entre brancos e pretos por quase 50 anos. O advogado e líder da resistência negra Nelson Mandela assumiu a presidência do país em 1994, pondo fim ao regime separatista. Apesar de riscado da Constituição, a resistência dos brancos aos negros ainda era grande, atravessando mais alguns longos anos de racismo em território sul-africano. Foi em 1995 que o país sediou a Copa do Mundo de Rúgbi. Mandela direcionou esforços de combate ao preconceito a partir do evento, na tentativa de unir diferentes classes e raças em torno dos jogos. A África do Sul foi a campeã do torneio após ter sido barrada das duas competições anteriores como movimento de luta contra o apartheid. A vitória, que contava com o ponta negro Chester Williams no elenco, era o símbolo de aspiração por uma nova África do Sul.
8. Joelhos ao chão
O quarterback Colin Kaepernick ajoelhou-se durante a execução do hino norte-americano em uma partida da pré-temporada da liga de futebol americano, em 2016. Em maio de 2020, o assassinato do negro norte-americano George Floyd pela polícia de Mineápolis resultou em protestos de diferentes segmentos de movimentos raciais no mundo todo. Não tardou para as manifestações aparecerem novamente nos esportes: do basquete ao futebol, o gesto de ajoelhar-se ao solo pelos jogadores pode ser visto até hoje antes do início de partidas como manifestação em prol da igualdade entre negros e brancos.
9. Fora, Bolso@#*!
Em setembro do ano passado, a jogadora de vôlei de praia Carol Solberg protestou contra o atual governo federal em uma entrevista, logo após receber o bronze no Circuito Brasileiro de Vôlei de Praia. A atleta sofreu represálias e apoios em igual medida por diferentes grupos militantes. Carol ainda foi advertida pelo STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva) devido à manifestação, e meses depois o mesmo tribunal revogou a aplicação da pena. Entidades e associações desportivas consideraram o movimento do STJD como uma tentativa de coerção e censura, seletiva em sua penalização.
10. “Sempre foi Exu”
Paulinho, atacante campeão da seleção masculina de futebol, usou suas redes sociais antes mesmo dos jogos de Tóquio para expressar sua crença religiosa. Iniciado no candomblé desde a adolescência, o atleta atribuiu à divindade Exu a sua convocação às Olimpíadas deste ano. O gesto foi replicado ao receber a medalha de ouro no final da competição, e por causa de sua celebração em referência a Oxóssi, orixá de caça, após marcar um dos gols contra a Alemanha, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro o nomeou a receber a Medalha Pedro Ernesto como contribuição no combate à intolerância religiosa.
Autor: Arthur Salles e Maurício GeronassoEdição: Mauri König