O dia em que o papa abençoou o boi ressuscitado

Autor: Sandy Lylia da Silva – Estagiária de Jornalismo

A Guarda Suíça ficou em alerta ao notar o par de chifres vindo em sua direção. Até então nada parecido havia tentado entrar no Vaticano, o que causou o estranhamento. Os seguranças se juntaram para tentar decifrar aquela criatura colorida e logo repararam nos inúmeros bordados que a revestiam, com estampas dos papas Francisco e João Paulo II. A caprichosa customização garantiu ao maranhense Boi Brilho da Ilha o passaporte para a benção papal.

Naquela ensolarada manhã de agosto de 2018, a alegoria do bumba meu boi, uma armação de 1,20 metro revestida de bordados, conseguiu o grande feito de acessar o Vaticano. Na primeira fila da audiência papal, em sua cadeira de rodas estava o líder do Boi Brilho da Ilha, o produtor cultural Cláudio Sampaio. Papa Francisco se aproximou e, ao ver o boi, evocou a Santíssima Trindade com o sinal da cruz. Foi o dia em que um papa abençoou um boi ressuscitado.

A história mais conhecida dessa ópera popular conta que a escrava Catirina, grávida e desejosa de comer língua de boi, pede a iguaria ao marido. Então, o escravo Chico mata o boi Mimoso, o mais querido do patrão, que ordena aos vaqueiros uma investigação do furto. O autor do crime é capturado. Depois de muita confusão, doutores e pajés são convocados e ressuscitam Mimoso por meio de rezas e magias. Chico é perdoado e os brincantes entoam cânticos de louvor com danças em volta do animal.

Nascido no Nordeste no século 18 e considerado uma das manifestações culturais mais autênticas do Maranhão, o bumba meu boi recebeu da Unesco em 2019 o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Com uma composição dramática recheada de musicalidade, personagens alegóricos e diálogos, versa sobre a lenda da morte e ressurreição do boi Mimoso. E, mesmo portando seu característico par de chifres, o boneco foi autorizado a adentrar os espaços sagrados de celebração católica no Vaticano.

Claudio presenteou o papa com uma miniatura do boi bumbá e no dia seguinte foi surpreendido com presentes enviados por ele. Ganhou um ramo de oliveira, um terço e um livro de orações com um bilhete escrito por Sua Santidade. “Nunca pensei que um sucessor de São Pedro pudesse botar a mão na minha cabeça e me abençoar. Era como se estivesse dissolvendo um comprimido efervescente na minha cabeça, a efervescência de uma limpeza espiritual. Depois disso minha vida mudou, comecei a ver o mundo de outra forma”, afirma.

Fundado há 30 anos em São Luís (MA) por José Serra Sampaio, pai de Claudio, o grupo folclórico já se apresentou em 22 países. Esta foi a quarta vez que o Boi Brilho da Ilha esteve na Itália. “Entendo que foi uma benção, mas também toda uma construção para que ocorresse essa audiência particular com Sua Santidade”, diz Claudio. Ao apresentar o folclore maranhense no Vaticano, ele foi escolhido como representante oficial de todos os grupos, o único presidente de grupo folclórico a ser recebido pelo papa.

Este, no entanto, não foi o primeiro encontro do Boi Brilho da Ilha com um líder máximo da Igreja Católica. Em 2005, quando levaram aos italianos a experiência das toadas de orquestra da cultura maranhense, os integrantes do grupo foram recebidos no Palácio de Castel Gandolfo, o refúgio do então papa Bento XVI, para assistir a uma de suas cerimônias eucarísticas.

Claudio entoou cânticos católicos brasileiros na missa em que participou. O padre da paróquia gostou tanto que convidou a comitiva para um chá da tarde. Feliz da vida, ele soltou uma frase despretensiosa: “Agora só falta sermos recebidos pelo papa”. O padre apenas anunciou que providenciaria um ofício. Dias depois, receberam no hotel um fax com a grata surpresa. O grupo pôde acessar a área interna do palácio papal e, junto com um seleto grupo, acompanhou o ato litúrgico de Sua Santidade.

Um boi de família

O Boi Brilho da Ilha foi fundado em 1992 por José Serra Sampaio, que teve seis filhos com Dona Itamires. Com a morte de “Seu Sampaio” em 1996, a filha Claudia assume a presidência do grupo folclórico. Em 2000, foi a vez do primogênito Claudio assumir o posto de presidente. “A partir de então, com apoio do governo estadual da época conseguimos iniciar apresentações fora do país, começando por Madri (Espanha)”, relata Claudio.

Em 2012, quem fica à frente do grupo é a mulher de Claudio, Junia Caroline Quadros. O casal teve três filhas: Uly Caroline Quadros Sampaio, 22 anos, July Caroline Quadros Sampaio, de 19, e a caçula Hanna Karolyne Quadros Sampaio, de 12. Em 2021, Uly assumiu a presidência do grupo. Todos, no entanto, participam das atividades do grupo. “É uma tradição familiar que tocamos por puro amor à nossa cultura”, resume Claudio.

O casamento de mais de duas décadas de Claudio e Junia teve enlace num fato curioso, e não foi obra do santo certo. Em 1998, após uma apresentação folclórica na igreja de Santo Antônio, no centro da capital São Luís, Claudio caminhava para a saída amparado por colegas, dada sua deficiência física. Ali, se deparou com uma tríade de imagens sagradas e se pôs a conversar com elas, num misto de reverência e intimação. E a bronca não foi para ninguém menos do que Santo Antônio, São Pedro e São João!

–– São Pedro, o senhor fique quietinho, pois o departamento do senhor é outro. Santo Antônio, eu já lhe coloquei de cabeça para baixo, de cabeça para cima e não acontece nada. São João, o senhor que é o chefe da boiada, me ajude, pois todo mundo do Boi Brilho da Ilha consegue arrumar namoro, e eu só pago dívida? Não! Eu quero uma companheira também!

A conversa franca se deu num 24 de junho, Dia de São João. Exatamente um ano depois, Claudio iniciaria um relacionamento com uma moça que viria a ser sua esposa. “Resultado da história: quem é o meu santo casamenteiro não é Santo Antônio, é São João”, brinca Claudio. Além de companheira na vida, Junia é também uma super parceira à frente do grupo folclórico, levando adiante a tradição familiar.

O melhor ativista cultural da América Latina

O engajamento nas representações artístico-culturais maranhenses projetou Claudio Sampaio a ponto de torná-lo presidente da regional Brasil da World Association of Performing Arts (Wapa), em 2018. Trata-se de uma ONG internacional que abrange a maioria dos festivais internacionais folclóricos no mundo, com representatividade em mais de 120 países.

Claudio é vice-presidente para a América Latina e ganhador do Wapa World Grammy Award 2022, prêmio que reconhece o trabalho de seus indicados na divulgação e preservação folclórica de seu país. O Boi Brilho da Ilha também foi eleito na categoria de melhor grupo folclórico. O auge desse reconhecimento acontecerá com a entrega do prêmio em evento a ser realizado de 16 a 21 de dezembro deste ano, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.

Claudio trabalha no projeto de salvaguarda do bumba meu boi com apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Ele admite que não é nada fácil preservar a cultura desta vertente do folclore popular. “O trabalho para impedir a subversão dos grupos para outros ritmos é constante. Salvaguardar o bumba meu boi é como exercer o trabalho de uma mãe, ensino tudo para as minhas filhas, incentivando que perpetuem a cultura de geração em geração”, diz.

Ele ainda não se dá por satisfeito, mesmo diante das realizações pessoais trazidas pelo trabalho desenvolvido junto à cultura de seu estado. Aluno de Jornalismo e de Relações Internacionais na Uninter, a perspectiva dos diplomas na mão faz com que Claudio vislumbre uma atuação em editorias de cultura e política após a formatura. Segundo ele, a possibilidade de cursar as duas graduações simultaneamente traz a força complementar para a realização de mais este sonho.

Não tinha rampa no meio do caminho

Ao assumir o leme do grupo Boi Brilho da Ilha, Claudio preencheu uma lacuna existencial experimentada depois do forçoso cancelamento de sua vida acadêmica. Funcionário público desde 1988 e assistente administrativo no setor de multas da Secretaria Municipal de Trânsito e Transporte de São Luís, em 1994 ele iniciou a graduação em Jornalismo em uma universidade federal. O sonho, no entanto, teve de ser interrompido. Não por vontade própria.

Claudio chegou até o penúltimo período do curso, mas, faltando pouco mais de seis meses para se formar, houve uma mudança de campus na universidade. A sua graduação foi interrompida compulsoriamente, sob alegação de não haver condições para lhe proporcionar acessibilidade para conclusão dos estudos. Deficiente físico, Claudio se viu impedido de levar o sonho adiante por falta de rampas ou elevadores que o levassem à sala de aula.

Hoje com 54 anos, ele lembra com pesar daqueles dias tristes. “Até hoje não entendo isso. Por incrível que pareça, fui obrigado a abandonar o curso de jornalismo, não renovaram minha matrícula. Eu tenho dificuldades de locomoção, mas já estava na rotina universitária há cerca de cinco anos”, relembra. “Fiquei sem norte, criei uma aversão ao meio acadêmico”, confessa.

Claudio reconhece que as pessoas não tinham culpa, mas lembra que ninguém se mobilizou. Só contou com o apoio momentâneo de alguns professores na época, mas não houve oferecimento de nada em meu favor para continuar a graduação. “Não me favoreceram absolutamente em nada. Mas não me deixei abater por isso, procurei cumprir de outra forma minhas aspirações pessoais, mostrando para mim mesmo que esse fato não ofuscaria minha vida”, recorda ele.

Uninter materializa vontade de ser jornalista

O trabalho desenvolvido com o folclore, visitando várias culturas, despertou em Claudio o interesse em cursar Relações Internacionais. Usuário assíduo do Facebook, visualizou na rede social uma propaganda da Uninter e, ao pesquisar mais a fundo, gostou do que viu. Em janeiro de 2020, se tornou aluno de Relações Internacionais, do polo Renascença, em São Luís do Maranhão.

Sempre rodeado pelos repórteres da cidade, seus antigos colegas de faculdade, ele foi incentivado a retornar a outra graduação, desta vez em Jornalismo. Poucos meses depois, em agosto do mesmo ano, já era calouro de Jornalismo. Agora, cursa as duas graduações ao mesmo tempo. E dá conta do recado em ambas.

“Trabalhar com a cultura me deixou dentro do mundo do jornalismo, e meus antigos colegas da década de 90 nunca saíram do meu convívio. A Uninter me acolheu, faz eu criar meu tempo, pois não tenho como sair para frequentar aulas presenciais. Ela está sendo a materializadora da minha vontade de ser jornalista”, diz o estudante. Claudio também faz parte do projeto de extensão Uninter Informa, mantido pelo curso de Jornalismo da instituição e transmitido na Rádio Uninter.

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Autor: Sandy Lylia da Silva – Estagiária de Jornalismo
Edição: Mauri König
Créditos do Fotógrafo: Divulgação/Boi Brilho da Ilha


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