O chamado de Anita
Autor: Poliana Almeida – Estagiária de JornalismoQuase dois séculos separam Anita Garibaldi da sua mais viva personificação no tempo presente. Quis o destino que o encontro da heroína de dois mundos consigo mesma se desse em Laguna, cidade catarinense onde nasceram as duas Anitas. Aquela que fez fama em batalhas no Brasil e na Itália agora renasce na sua melhor versão dos palcos.
Nascida Ana Maria de Jesus Ribeiro, ela entrou para a história como Anita Garibaldi. Lutou ombro a ombro com o marido, Giuseppe Garibaldi, que tanto exaltou sua coragem durante a Revolução Farroupilha (1835-1845). Na fuga com o marido para a Itália, combateu na primeira guerra da independência do país contra a Áustria (1848-1849). Daí ser chamada de heroína de dois mundos.
Anita nasceu em 1821, na mesma Laguna em que nasceria Eliziane Marcelino de Souza, em 1986. Sob o nome artístico de Lize Souza, é quem mais vezes interpretou a guerreira no teatro e no cinema. Ali, Anita nasceu para a história e Lize nasceria para a arte da interpretação ao emular a personagem de sua maior admiração.
A história de Lize começa aos 6 anos, quando via nas trupes teatrais que visitavam sua escola uma oportunidade de construir uma carreira profissional. “Foi ali que entendi que queria fazer teatro, cinema, TV, qualquer coisa relacionada à natureza dessa comunicação”, descreve.
As primeiras peças foram ainda na infância. Mas, foi na adolescência que começou a interpretar grandes clássicos da literatura, entre eles o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, quando incorporou o personagem João Grilo, e Tieta do Agreste, em que interpretou a protagonista da obra de Jorge Amado.
Em 2003, aos 17 anos, surgiu a peça que a faria alçar voos. O espetáculo “A tomada de Laguna”, com direção geral de Adílcio Cadorin, ex-prefeito da cidade, narrava a Revolução Farroupilha.
A proposta era enaltecer três grandes momentos da vida de Anita Garibaldi: aos 14, aos 18 e aos 28 anos. Porém, o diretor não tinha uma atriz capaz de interpretar a protagonista na primeira fase. “Eu tinha 17 anos, mas era bem magrinha e miúda, ou seja, parecia uma mulher de 14 anos. E aí fui me oferecer para o papel”, lembra.
Ao procurar Adílcio por todo lugar, Lize soube que ele estaria numa reunião no Cine Teatro Mussi. Lá chegando, se escondeu no armário até a conversa dos adultos terminar. Deu as caras quando o viu sozinho. Indagou se o papel de Anita aos 14 anos já estava preenchido. Adílcio disse que não, e a menina emendou uma tréplica: “O que eu preciso fazer para conseguir o papel?”.
Lize precisou responder a apenas duas perguntas do diretor: se andava a cavalo e se já era atriz. “Não sei andar, mas se o senhor me der um cavalo e me der um tempo, eu vou aprender a andar a cavalo e o senhor vai ver a melhor Anita”, disse confiante. E completou: “Faço teatro apenas de forma amadora e acho os amadores melhores porque eles fazem o trabalho por amor”.
A questão do cavalo, inclusive, buscava demostrar um dos momentos mais tensos da vida da guerrilheira: a fuga da cidade de Mostardas (RS). A cena se dá ao lado do marido, Giuseppe, correndo a fim de despistar as tropas imperiais no auge da Guerra dos Farrapos. Por outro lado, ela apanha o filho Menotti, de 12 dias de vida, e sai galopando até alcançar um bosque próximo da cidade. Ali, permaneceu por quatro dias até o reencontro com o amado.
Esse fato é tão marcante na trajetória de Anita que virou monumento em Roma, no lugar onde a ativista foi enfim enterrada após sete sepultamentos. Além disso, também virou melodia na voz de Marlene Pastro, que traduziu em música todo o evento: “Anita morena da pele macia/ Amante de noite soldado de dia/ Um filho no braço no outro um fuzil/ Um filho no braço no outro um fuzil”.
Adílcio recorda com ternura da primeira atuação da atriz no papel de guerrilheira. No dia seguinte à abordagem da menina, ele se encontrou com Lize no espaço onde estavam os cavalos que estariam na peça. Lá, a jovem não só passou no teste como ainda demostrou aquilo que Adílcio tanto procurava: a audácia de Anita Garibaldi. “Eu precisava de uma atriz que fosse jovem, mas que também fosse audaciosa. E a Lize se demostrou audaciosa até na forma de me abordar”. Três meses depois, ela ganhou o papel.
Fundador e atual diretor do Instituto Cultural Anita Garibaldi (CulturAnita), Adílcio Cadorin não poupa elogios ao descrever a trajetória da atriz. Faz questão de mencionar que de todos os cinco eventos de A tomada de Laguna, Lize foi a atriz que melhor interpretou o papel da Anita. “Por isso, sou muito grato à Lize. Aliás, a cidade de Laguna é muito grata a ela, como a grande atriz que merece o nosso reconhecimento e aplauso”, ressalta.
Esse foi o primeiro momento, mas não o único em que a história de Lize e de Anita Garibaldi se cruzaram. A intrepidez da ativista e a perseverança da atriz abriram caminhos que marcaram a vida de ambas.
Nos caminhos de Anita
Depois da experiência de interpretar Anita pela primeira vez, Lize não parou mais. Ao longo da carreira, foram sete trabalhos em que ela teve o privilégio de contar a história de sua conterrânea. São eles:
- A tomada de laguna – Edição de 2003. Criação: Adílcio Cadorin
- A tomada de laguna – Edição de 2004. Criação: Adílcio Cadorin
- A retirada – Longa-metragem de 2005. Direção: Rolando Christian Coelho.
- Anita, amor e história – Em 2006, longa-metragem ítalo-brasileiro que foi para a Itália.
- Anita – Longa-metragem de 2016. Criação: Rolando Christian Coelho e direção de Olindo Estevam.
- Vida e Morte de Anita Garibaldi – peça teatral de 2019.
- Anita: Amor, Luta e Liberdade – Série documental da NDTV – Rede Record de Santa Catarina em 2021. Direção: Isabela Hoffmann.
Este último, inclusive, é uma fonte de imenso orgulho para a atriz, porque é uma das poucas obras que explora a história sob o ponto de vista da própria Anita. Ou seja, é a primeira vez que temos o olhar da narrativa não sendo derivado da perspectiva de Giuseppe Garibaldi.
Além de aplausos e admiradores, Lize também coleciona prêmios. Um dos mais emblemáticos foi a estatueta de melhor atriz no Festival Internacional de Cinema Cristão, no Rio. Embora fosse um festival dedicado a filmes gospel, o longa-metragem Anita angariou ainda os prêmios de melhor figurino (assinado por Aurelino Cunha) e melhor direção de arte (Olindo Estevão e Rolando Christian).
“O significado desse prêmio é muito grande para mim. As pessoas entenderam, através do meu trabalho, o quanto essa mulher foi importante para a conquista do regime republicano no nosso país”, salienta Lize.
De acordo com a atriz, o sucesso para interpretar Anita tão bem não é nenhum segredo. O Brasil, por si só, é um país que fomenta a história dessa mulher, mas na região Sul isso é ainda mais presente. Um exemplo são as cidades de Anitópolis e Anita Garibaldi, ambas em Santa Catarina, que carregam no nome toda a carga da sua jornada inspiradora.
Logo, ser lagunense e viver toda a atmosfera aritiana tornou-se um grande laboratório para Lize. Isso, sem dúvida, ajudou muito na preparação e internalização da personagem. “Motivo pelo qual o meu trabalho se destaca em relação a outras atrizes. Eu me dediquei muito e me machuquei muito também”, declara.
A literatura me levou ao Rio
Ao interpretar alguns clássicos literários na adolescência, Lize passou a alimentar a paixão pelos livros. Ao completar 20 anos, decidiu morar no Rio de Janeiro para estar mais próxima de um dos maiores ambientes cinematográficos do país e cursar letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Lá, não conseguia se manter apenas com o trabalho de atriz. Por isso, trabalhou como administradora de empresas por 13 anos numa rede de pizzaria bem famosa na cidade. Oito anos depois de chegar à cidade maravilhosa, passou em décimo lugar no curso de letras/literatura da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Infelizmente, um dos seus sonhos foi interrompido pela pandemia. “Eu não consegui me formar. Fiz três anos na UERJ e vim embora, pouco antes de a pandemia começar”, lamenta. De volta à terra natal, Lize retomou os estudos na área de letras. Pela proximidade com o conteúdo ofertado na UERJ, decidiu ingressar na Uninter, mas o polo mais próximo fica em Tubarão, distante 30 km de Laguna.
“Quando tive meu primeiro contato com as atendentes, com o carinho que a equipe da Uninter tem, isso conquistou meu coração. São pessoas que estão realmente ao meu lado pela conquista da minha vida acadêmica. Tenho muito orgulho de fazer parte da Uninter, viu?”, diz satisfeita.
Mais Anita me aguarda?
Sobre os planos para o futuro, Lize não nega que pretende alimentar as duas paixões que carrega: atuação e literatura. Um dos maiores sonhos como atriz é compor o elenco da Rede Record de Televisão – ou se tornar uma prata da casa.
Ela já pisou nos estúdios da empresa, mas apenas para fazer o papel de uma das esposas do faraó Ramsés na novela Os 10 Mandamentos. “Sou cristã e sempre quis interpretar as mulheres da Bíblia. Então, coloco isso diante de Deus e estou fazendo o possível para isso acontecer e deixando o impossível para Ele fazer”.
Mas, caso a expectativa não se cumpra, mantém o plano B, de continuar os estudos. Sua meta é chegar ao doutorado em literatura para ministrar aulas sobre esse tema no ensino superior.
“Canalizo as minhas energias na carreira acadêmica, porque é algo libertador. Quero contribuir para a formação de pessoas. É um prazer que tenho: estudar e ganhar dinheiro estudando. Compartilhar conhecimento sempre foi um objetivo meu. Apresentando as possibilidades de crescimento, seja como atriz, seja como professora, é isso que eu almejo para a minha vida”, diz.
E, como já era esperado, Anita Garibaldi está presente em sua vida até hoje. Atualmente, ela presta serviços como supervisora do patrimônio histórico imaterial na Casa Anita Garibaldi, em Laguna. Apesar de estar fora dos palcos e um pouco distante das salas de aula, Lize não demonstra arrependimento. Afinal, ela compreende que “não se trata mais de interpretar, mas defender o legado de Anita Garibaldi”.
Autor: Poliana Almeida – Estagiária de JornalismoEdição: Mauri König
Créditos do Fotógrafo: Arquivo pessoal/Lize Souza