Educação bilíngue abre as portas de um novo mundo para estudantes surdos

Autor: Nayara Rosolen - Analista de Comunicação

Sem vida. É assim que a comunidade surda se sente sem a Língua Brasileira de Sinais (Libras). E foi dessa forma que Rafaela Hoebel, 44 anos, Bruna Narazaki, 35 anos, e Priscila Reis, 31 anos, se viram até o começo da adolescência e juventude. Três mulheres surdas que experienciaram a negação, o preconceito e os traumas de não poderem desenvolver e praticar por mais de uma década da própria vida o que hoje têm como primeira língua e o que agora permite que conheçam o mundo de outra forma e possam exercer sua profissão. Professoras que praticam a docência que gostariam de ter recebido no período escolar.

“Se você tivesse aprendido língua de sinais com três anos, como seria sua vida?”. A questão direcionada para as docentes faz Bruna imaginar que teria uma outra visão de mundo e da sociedade. “Através dela, eu consigo aprender tudo, me proporciona um processo de desenvolvimento cognitivo”, explica.

A realidade de estudantes da comunidade surda pouco mudou desde a instituição da Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que reconhece a Libras como um meio legal de comunicação e expressão no país. Mas alguns passos importantes se dão em direção à uma educação inclusiva efetiva.

É o caso de Santa Catarina, que se tornou o primeiro estado brasileiro a oficializar uma legislação que garante a educação bilíngue e a língua de sinais como primeira língua para a comunidade surda em toda a rede estadual de ensino, desde a educação infantil até o grau superior. O governador Jorginho Mello sancionou a Lei Estadual nº 19.031 em 29 de julho de 2024.

“Essa lei é fundamental, porque há um reconhecimento linguístico, valoriza e reconhece a identidade cultural e linguística da comunidade surda. O acesso à educação bilíngue proporciona um ambiente mais acessível, porque permite que os surdos aprendam os conteúdos na língua materna e também tenham melhor desempenho acadêmico”, declara a professora de licenciatura em Letras Libras da Uninter, Marcelly Mesquita, que é ouvinte e acredita na legislação como uma redução das barreiras comunicacionais e promoção de empatia.

A primeira língua com a qual Bruna teve contato, foi a japonesa, quando morava no país asiático, na infância. Ao retornar para o Brasil, primeiro passou pela língua portuguesa. A Libras só se tornou uma realidade perto dos 15 anos de idade, a terceira língua com a qual teve contato.

Ainda assim, precisava ser escondido. Na época, a linguagem era proibida até mesmo em escolas para surdos. Dentro de casa, os pais também eram contra e não permitiam. Mas foi nessa instituição, no contraturno da escola regular, o primeiro contato com a comunidade surda e onde aprendeu os primeiros sinais.

“Nós nos comunicávamos escondido no intervalo. Foi ali que o mundo se abriu para mim. E eu passei, então, a ter uma compreensão mais clara das coisas. A minha sinalização com fluência passou a acontecer com aproximadamente 15, 16 anos. Hoje, minha mãe e meu pai conseguem compreender o que a Libras significa para a comunidade surda”, lembra Bruna, que vê o ensino de Libras como uma possibilidade de os surdos se posicionarem dentro das escolas e demais espaços sociais.

Rafaela ressalta que a língua sinalizada “traz vida para a comunidade” e afirma que se um surdo estiver imerso em uma comunidade ouvinte, “ao invés de alavancar, vai retroceder”. “Um prejuízo gigantesco para nós surdos”, salienta. A docente carrega na memória os professores que falavam de costas para ela no processo de oralização que era imposto para os surdos. Depois de todos os percalços, a família, preocupada, optou por um professor particular.

“Eu ficava ali imaginando [na sala de aula] ‘nossa, eu quero ser professora também e um dia serei’. E guardei esse sonho para mim”, conta. Agora, enquanto professora no curso de Letras Libras ao lado de Bruna e Marcelly, ela enxerga o quanto é importante este local de fala, para que todos saibam quem são e pelo que passaram os professores surdos e bilíngues. Para que estes profissionais tenham o reconhecimento de suas histórias e para que também os professores ouvintes bilíngues façam um trabalho diferente a partir de agora.

“Já paramos para pensar nos surdos idosos? Quais são as competências linguísticas e o que eles passaram? O atraso cognitivo, a palmatória, os traumas sérios, graves, que trazem em suas vidas. Não tiveram acesso à possibilidade do aprendizado, por exemplo, de língua portuguesa. Hoje nós temos professores, mestres e doutores trabalhando nessa vertente, lutando no MEC [Ministério da Educação], trabalhando e pedindo essas escolas bilíngues”, garante Rafaela.

Marcelly lembra a frase de que “o surdo é um estrangeiro dentro do próprio país”, pois o surdo brasileiro, por exemplo, não se comunica através da língua portuguesa, principalmente na modalidade oral, que é a língua pátria majoritária. Por isso, “se sentem estrangeiros”.

Uma geração de surdos fortalecida

Aluna no curso de Letras Libras, Priscila é vinculada ao polo de Sombrio (SC) e já atua como docente na rede estadual catarinense, mas também sempre estudou com colegas ouvintes. Não existia educação bilíngue ou intérprete de Libras. As escolas que ofereciam educação para surdos, na época, eram as Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAEs). Lá, a estudante conta que as professoras não conheciam a língua de sinais. Por isso, além de não conseguir se comunicar, também não aprendeu nada, “ficava apenas observando”.

Com cerca de dez anos de idade, teve o primeiro contato com a associação de surdos e ali começou a se comunicar através da língua de sinais em alguns momentos. Foi também a partir dos 15 anos que conseguiu a fluência. Aos 31 anos, Priscila passou metade da vida sem poder se comunicar na própria língua. Hoje, consegue ser o exemplo positivo para a única estudante surda que atende na escola onde trabalha.

Até então, esta aluna de Priscila também nunca havia tido contato com outros professores bilíngues e toda a turma acabou envolvida neste processo de aprendizagem da Libras. A docente lembra a emoção dos demais profissionais e também da boa interação com os alunos ouvintes, que a princípio tiveram uma barreira de comunicação, mas chamavam com dúvidas e demonstravam a necessidade de uma disciplina da língua de sinais. “Foi muito emocionante, foi um prazer”, afirma.

“É bastante importante e pertinente que isso aconteça e que esse acesso permaneça. Trabalho de segunda a quinta-feira na escola e fico muito angustiada por vezes pensando em como ensinar, em como o aluno vai aprender a fazer a leitura de textos acadêmicos que são complexos, com esse acompanhamento e trabalhando todo o conteúdo em língua de sinais. [Mas] me tendo como modelo positivo, fluente em língua de sinais, esse processo de aprendizagem ocorre de forma mais satisfatória. Me sinto emocionada e feliz de estar atuando”, declara Priscila.

A estudante da Uninter conta que foi durante a aprendizagem nas aulas da professora Rafaela, no desenvolvimento linguístico dentro da instituição, que pôde estabelecer critérios de metodologia de ensino para a aprendizagem sinalizada da aluna que atende. A capacidade linguística da jovem em questão foi ampliada a partir de recursos visuais, somado à proximidade com uma professora semelhante a ela, de maneira diferente de como costuma ocorrer com professores ouvintes.

Em entrevista para a CNU, as profissionais reunidas afirmam que só têm a possibilidade de participar e interagir em conversas como essa, porque têm a língua estruturada e desejam que as gerações futuras não passem pelo prejuízo que tiveram no início da vida. “Que essa geração seja uma geração de surdos fortalecida”, deseja a professora Rafaela.

Em Santa Catarina, a lei entrou em vigor no dia da publicação, o que significa que as instituições devem, de imediato, se adequar à nova proposta. Dessa forma, os alunos surdos terão todas as aulas ministradas em Libras como primeira língua e o português escrito sendo utilizado como segunda língua.

A lei prevê equidade de acesso também para surdocegos, pessoas com deficiência auditiva que sinalizam, surdos com altas habilidade e superdotação e surdos com outras deficiências associadas.

A professora Marcelly explica que, na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, a educação bilíngue será oferecida por meio de um professor bilíngue, preferencialmente surdo. Em escolas de surdos, nas classes bilíngues de surdos ou em polos de educação bilíngues de surdos. Já nos anos finais do ensino fundamental, no ensino médio e superior, é oferecida a partir de um professor bilíngue ou com a presença do intérprete de Libras durante as aulas.

“O diferencial dessa lei reside justamente na garantia da disciplina de Libras em todos os níveis de ensino dessa rede pública. E todo esse diferencial merece ser replicado em âmbito nacional, é isso que a gente espera, que seja incluído na esfera federal para que se torne uma realidade em todo o país”, afirma.

A docente acredita ainda que está inserida na iniciativa a desmistificação da ideia de que a Libras é apenas um recurso para auxiliar a comunidade surda, possibilitando uma sociedade mais coesa, respeitosa e onde as diferenças são valorizadas e respeitadas.

Acolhimento e pertencimento

Foi por meio de uma mensagem da colega do curso de Letras Libras Jerusa Rabelo, 45 anos, que Priscila e as professoras souberam da legislação aprovada em Santa Catarina. Mesmo vinculada ao polo em Juiz de Fora (MG), a estudante está sempre atenta a todas as movimentações da área e carrega um interesse genuíno pela língua de sinais desde muito nova, quando ainda estudava o magistério no ensino médio.

Ao finalizar a educação básica, foi em busca de um curso de Libras por interesse próprio. A profissional é ouvinte e, até então, não tinha contato com nenhuma pessoa surda. Fez a formação por meio de uma paróquia na cidade em que reside, no entanto, ao final descobriu que só seriam certificados os professores surdos. Mesmo com a frustração, foi onde conseguiu contato mais direto e efetivo com a comunidade surda.

Jerusa conta que, onde mora, o curso de Letras Libras é oferecido apenas em universidade federal. Fora isso, são encontrados cursos de intérpretes nas paróquias, em instituições públicas ou pela própria Secretaria da Educação Municipal. Mas que compõem apenas 120, 180 horas, o que impossibilita o aprofundamento e não dá espaço para o estágio e a prática, principalmente quando se fala do bilinguismo.

A mineira, que também atua como coordenadora e supervisora no ensino fundamental, explica que, na região, o que existe são intérpretes dentro da sala de aula, que traduzem o que é dito pelos professores. Essa dinâmica, porém, faz com que o aluno se sinta excluído, porque se torna “o diferente”.

“A partir do momento que você traz o bilinguismo, que é o professor que trata o português e Libras para todos, o aluno já se sente acolhido, e com a questão do pertencimento. Não deixa de ser uma valorização também do profissional quanto ao professor que está ali. É um enriquecimento muito grande, muito valoroso”, destaca a profissional.

Rafaela pontua que, quando se fala de língua portuguesa, é através da escrita que se dá, e precisa de estratégias e metodologias para que o estudante surdo avance. Uma preocupação com o aprendizado que não existia para as gerações anteriores, que focavam apenas na oralidade. Se trata, então, de um conhecimento mais profundo da língua portuguesa, o que é proporcionado também pelo professor bilíngue e por legislações que reafirmam e colocam em prática este modelo de ensino.

A docente acredita que quando há propostas de educação com a inclusão da Libras em um estado, como o caso de Santa Catarina, se torna uma referência. “Abriu como uma chave de ouro uma oportunidade para nós. É um momento de avanço”, enfatiza.

“Temos que trabalhar nesse viés da união, juntos, para que tenhamos um futuro muito melhor. Claro, com lutas também, mas de maneira mais tranquila. Esse é o nosso sonho, o sonho do surdo. E eu acredito que do ouvinte também, trabalhar nessa relação de união, divulgando a Língua Brasileira de Sinais”, reafirma Priscila.

Corpo docente capacitado

A capacitação de profissionais que atuam neste campo é um ponto de atenção colocado pelas profissionais. Embora a educação como um todo enfrente dificuldades, quando há uma lei, Marcelly expressa a importância de cursos de capacitação para os docentes de todas as disciplinas e a colocação de professores capacitados. Não apenas surdos, mas licenciados em Letras Libras. Ou, então, professores ouvintes, mas que sejam usuários de Libras e estejam licenciados para ocupar estes espaços no mercado. Caso contrário, “vamos cair nos mesmos erros”.

Jerusa apresenta preocupação quanto à formação de línguas dos professores, que precisam ter consciência e a sensibilidade para lidar com os estudantes. “Ele está ali com as portas fechadas, doido para abrir o mundo dele (…) O que eu acho importante? Acompanhamento de um professor surdo, porque é ele quem vai trazer essa sensibilidade”, complementa.

Marcelly, em colaboração com a professora Elaine Machado, foram as responsáveis por um dos primeiros projetos de inclusão no estado do Paraná, ainda em 2012, na cidade de Paranaguá (PR). O estado não possui uma legislação oficial para a área, mas alguns municípios desenvolvem as próprias ações.

Neste caso, o projeto visava a introdução do ensino da Libras para crianças ouvintes do Ensino Fundamental I, através da formação de professores, para que se tornassem agentes multiplicadores da língua de sinais. A capacitação acontecia por meio da Secretaria de Educação Municipal, com aulas ministradas por Elaine, professora surda. Com o tempo, a ideia expandiu e incluiu também a educação infantil, com o reconhecimento da importância de uma formação bilíngue desde os primeiros anos de vida.

“É considerado um dos pioneiros, senão o pioneiro, aqui do Paraná. E representa uma alternativa viável para os municípios que possuem autonomia na criação de cursos e oficinas voltadas à inclusão. No caso específico de Paranaguá, o projeto de ensino de Libras continua a existir. Prosperou e reafirma esse legado e impacto positivo na formação de alunos que crescem conscientes de que existe uma diversidade linguística bem próxima a eles”, conclui Marcelly.

Quando se trata do ensino superior, a docente aponta que a Uninter se compromete a proporcionar uma “educação bilíngue de excelência” para os estudantes, por meio da implementação da janela de Libras em todos os cursos que possuem alunos surdos matriculados. Trabalho este que é desempenhado por intérpretes vinculados aos Estúdios da instituição, sob gerência de Sérgio Demomi. Esta entrevista com as professoras bilíngues surdas, por exemplo, só foi possível graças ao suporte da intérprete de Libras Luana Mann.

Além disso, o centro universitário disponibiliza legendagem para alunos ensurdecidos, aqueles que têm dificuldade auditiva, mas não utilizam da língua de sinais. E, há vários anos, também oferece a disciplina de Libras em todos os cursos, de todas as escolas superiores e graus acadêmicos. Ou seja, para os bacharelados e as licenciaturas, como obrigatória ou formativa.

“O nosso objetivo não se limita a atender essas exigências legais, de forma alguma. Estamos buscando garantir pleno acesso, promovendo um ambiente onde cada estudante pode se sentir incluído. É dessa forma que nossa instituição reafirma o seu compromisso com a educação, que vai para além das questões linguísticas e culturais, mas que promove a inclusão por um viés mais amplo, que é o da diversidade como um pilar fundamental de todos o nosso projeto educativo”, garante a docente.

Marcelly demonstra a felicidade de poder formar profissionais que vão ocupar os espaços que estão sendo abertos com qualidade, tendo em vista alcançar o desejo maior que é o de encontrar professores bilíngues que consigam ensinar a língua portuguesa para surdos de forma mais qualitativa. “O investimento na capacitação desses professores é o primeiro passo para que se tenha, de fato, uma educação bilíngue na prática”, finaliza.

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Autor: Nayara Rosolen - Analista de Comunicação
Edição: Larissa Drabeski


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