“Desvío de Noche” experimenta limiar entre a verdade e a ficção
Autor: Arthur Salles - Assistente de Comunicação AcadêmicaDe Orson Welles a Abbas Kiarostami, a docuficção atravessa a história do cinema e suas transformações. Um sem-número de cineastas já empregou suas diretrizes para explorar os limites entre a ficção e a realidade, e teorias não faltam para investigar o que é a verdade dentro e fora das enquadramento das câmeras. O norte-americano Robert Flaherty é o principal nome do subgênero, tanto pelo pioneirismo quanto pelas vertentes criadas a partir de suas obras. São dele os primeiros longas documentais de sucesso: Nanook, o esquimó (1922) e Moana (1926).
O Olhar de Cinema dedicou em 2018 uma mostra ao francês Jean Rouch. O diretor foi responsável por se apropriar das bases do cinema de Flaherty para o pleno desenvolvimento da etnoficção e do cinema verdade. Enquanto o primeiro movimento se vale da encenação da rotina de povos de alguma etnia específica (muitas vezes nativos ou de comunidades isoladas) para a captação de seus costumes em tela, o segundo se dá na intervenção direta dos realizadores no universo retratado pelo filme. A câmera, a equipe, os métodos de pós-produção, o recorte da realidade, a intenção do cineasta: qualquer aspecto que se coloque entre o fato e sua apreensão é uma intermediação e construção de uma nova realidade.
As experimentações promovidas pelo subgênero fascinam autores e espectadores justamente por esse encontro capaz de produzir uma dimensão nova, mais impactante que o real e mais fiel que a ficção. Festivais de cinema ao redor do mundo costumam incluir produções do tipo em seu rol de exibições. Assim como a citada e passada mostra especial, o Olhar de Cinema trouxe para sua 12ª edição mais exemplares do subgênero, como é o caso do canadense Desvío de noche.
O filme inicia como uma investigação empreendida por uma jornalista atrás de uma desaparecida patinadora artística, Violeta Martinez. A repórter, que só se apresenta por meio de esparsas narrações, chega até a cidade natal de Violeta, em uma vila costeira do México. A investigação prossegue com a escassez de pistas, entrevistando moradores e pessoas que possam conhecer o paradeiro da patinadora. A câmera se embrenha na mata, segue o movimento das folhas, percorre o curso de rios. As imagens se potencializam com o som de cada elemento visto em tela e do que segue fora dela, como o barulho de animais e do estalar da vegetação. Com esses recursos, o filme desdobra-se entre as histórias e lendas contadas pelos moradores. Violeta já não é o objeto de estudo do filme; agora, num desvio tomado pela narrativa, dois habitantes locais ganham o protagonismo no desenrolar de seu dia a dia. Violeta, aliás, nunca existiu, mas foi utilizada como dispositivo para a contação de outras histórias.
A dupla de diretores composta pelo francês Paul Chotel e pela canadense Ariane Falardeau St-Amour viajou à costa mexicana sem um propósito claro. O diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul surgiu como inspiração durante o processo de montagem: seu Mal dos Trópicos (2004) toma um desvio semelhante no meio da projeção, momento em que o título do filme surge à tela, tal qual na produção canadense. Com padrões formais estabelecidos, o exercício estilístico está pronto para se desenvolver, mas o que há de conteúdo para ser apresentado?
Desvío de noche faz parte da mostra Novos Olhares, dedicada a longas-metragens radicais em suas propostas estéticas. O risco é um caminho válido. A liberdade só é possível quando confrontada pela resistência, parafraseando o escritor Bernardo Carvalho. Dessa forma, o filme encontra suas virtudes e seus vícios na digressão encampada como um fim em si. Despropositada, a liberdade se põe aos cineastas como um horizonte sem início, meio e fim; impercorrível, portanto. Os 95 minutos de projeção são vagarosos com a tentativa carregada de imersão no idílico vilarejo e na cultura local por meio de relatos orais dos indivíduos. Ainda que inventivos, desvios no escuro podem ser também penosos.
A programação completa e os ingressos estão disponíveis no site do festival. A Uninter é uma das patrocinadoras do Olhar de Cinema, e a Central de Notícias Uninter (CNU) fará a cobertura de todos os dias do evento.
Autor: Arthur Salles - Assistente de Comunicação AcadêmicaCréditos do Fotógrafo: Divulgação