Conhecimento histórico é a chave para quebrar preconceitos culturais

Autor: Nayara Rosolen - Estagiária de Jornalismo

A ideia de cultura pode ser observada a partir de duas perspectivas. Primeiro, como um fenômeno humano, algo que distingue o homem dos demais seres. Depois, como variações de fenômenos humanos, como a cultura brasileira, a americana, inglesa, paulistana, nordestina, para se referir a diversos grupos. Mas a origem do termo surgiu relacionado à ação de cultivar o solo, na Idade Média.

Com o passar do tempo, entre os séculos 17 e 18, surge a cultura com a ideia de “sala de ópera”. Eram cultas apenas as pessoas refinadas, como uma domesticação do indivíduo, que vai para a escola, faz aulas de etiqueta, consome determinados tipos de arte. No século 19, nasce a disciplina da antropologia e com ela a ampliação e democratização do termo, que passa a ser relacionado com o coletivo, os grupos com seus diferentes modos de viver.

“Importante lembrar: a gente vincula muito a cultura como uma certa ideia de refinamento tecnológico. Se você pergunta para as crianças o que é cultura, elas vão dizer que a cultura está no museu, na música, arte. É interessante como a ideia de cultura ainda está presa nessa ideia de refinamento. Mas a antropologia mostra que cultura é muito mais que isso e a ideia abrange muito mais coisas”, explica o historiador e cientista social Fabiano Atenas, que é mestrando de Antropologia na Universidade de São Paulo (USP).

Para contextualizar esses cenários, o professor utiliza o livro “A invenção da cultura”, de Roy Wagner, e o texto “Raça e história”, escrito por Claude Lévi-Strauss após a Segunda Guerra Mundial. O multiculturalismo surge da diversidade cultural e étnica, por meio das relações que se dão entre os diferentes povos. Traz uma perspectiva de abertura, com uma sensibilidade social e política, para promover a interação e a escuta, muito necessárias para uma sociedade democrática.

Atenas ressalta que muitas vezes as raças e etnias são vistas como culturas, como se todas as pessoas de uma mesma raça vivessem de um mesmo modo, mas isso não é real. Existem diferentes culturas dentro desses grupos. Ele aponta essa questão no texto de Lévi-Strauss, que já abordava o tema e afirmava que existem poucas raças perto do infinito número de culturas. Outro ponto levantado são os chamados “povos isolados”, como os indígenas no Brasil. O profissional lembra que a ideia de isolado não significa que não tenham contato com outros povos indígenas.

“Quando a gente fala de povos isolados, a gente fala desses povos não quererem contato com o nosso mundo, o mundo dos brancos. Todas as sociedades humanas sempre estiveram em relação. É justamente essa relação entre povos que produz cultura, que produz diferença. Os grupos humanos têm uma tendência a sempre querer se diferenciar. Para uma sociedade humana produzir sua identidade, ele sempre precisa de um outro. O outro é uma condição necessária para eu produzir o ‘eu’”, afirma.

Em contrapartida, vem o sistema econômico capitalistas que, como forma de pensamento, visa tornar todos os entes que compõem o mundo em forma de mercadoria e tem a lógica de transformar tudo que é diferente em igual. A própria globalização caminha nessa direção e a indústria hollywoodiana é um exemplo. Dessa forma, surge um duplo movimento, já que as pessoas querem ser diferentes. Atenas cita a rede de fast food McDonald’s, que é globalizada, mas em cada país possui opções de produtos regionais.

“A ideia de diferença é constitutiva do humano e, justamente por ser constitutiva do humano, há uma obrigação dos Estados nacionais, uma obrigação da ONU, defender a diversidade por si mesma. A diversidade é constitutiva do fenômeno humano. Por si só, a diversidade humana é importante. E quando eu falo de diversidade humana, no sentido mais amplo, eu estou falando de diversidade cultural, linguística, musical, epistemológica, de saberes”, conclui.

Cleber Cabral, professor da área de Linguagem e Sociedade da Escola Superior de Educação (ESE) da Uninter, lembra “a importância de tomar cuidado ao adotar uma única lente para ler as diversidades culturais. A melhor opção é o olhar caleidoscópio, que a gente possa mudar a perspectiva para mudar a nossa percepção”.

A resistência dos povos indígenas

As aldeias indígenas enfrentam desafios para se manter existentes desde a chegada dos europeus à América. No Brasil, boa parte da população sequer sabe que essas comunidades ainda existem. Isso porque, aos poucos, eles foram perdendo espaço e precisam lutar até hoje para manter seus territórios. Também não conseguem ocupar muitos lugares na sociedade para contar suas histórias.

Juliana Kerexu, cacique da aldeia Tekoá Takuaty, na Baía de Paranaguá (PR), tem lutado para mudar essa realidade e busca por espaços para discutir essas questões, como instituições de ensino. Ela acredita no coletivo para que possa acontecer essas mudanças, pois lembra que nem mesmo a natureza, a mata, as árvores, conseguem se manter sozinhas. Kerexu faz uma analogia a resistência das árvores, que antes de pensar em crescer, primeiro se recolhem para criar raiz “no seio da mãe terra”.

“Se eu não me conhecer, se eu não souber de onde eu vim, não souber a minha história, muitas vezes nesse caminho eu vou me perder, porque não me reconheço. A partir do descobrimento do Brasil, os povos originários, os povos indígenas, a gente não existe mais. Por exemplo, aqui no estado do Paraná existe várias aldeias, o nome do estado é indígena, vários municípios vêm de nomes indígenas, então vamos buscar olhar para as nossas regiões, para os nossos territórios, vamos buscar conhecer essas comunidades tradicionais, fortalecer a nossa própria história”, salienta.

O povo brasileiro é composto por várias culturas, possui uma mistura gigantesca, mas a cacique lembra que muito da história se perdeu e não há registro nem mesmo em livros escolares. Kerexu afirma que muito do preconceito surge da falta de conhecimento e para isso existem os debates acerca do tema.

“Muitas vezes os brasileiros ressaltam o seu ancestral europeu, conhece mais a parte do seu ancestral que veio do outro lado do oceano. E a sua mãe que o gerou aqui nessa terra para formar esse Brasil que nós conhecemos hoje? Quando a gente começa a acessar isso, abrir essas rodas de conversa de diálogos, ambos vamos tirar as nossas dúvidas, ambos vamos esclarecer a verdadeira história”, diz.

Esses povos também não encontram muitos espaços em que as pessoas os ouçam. Nesse sentido, Kerexu conta com as redes sociais para espalhar suas palavras. Em um perfil do Instagram (@jukerexu), ela divulga crônicas e poesias, que contam muito da arte e da espiritualidade indígena. Dessa forma, muitas pessoas começaram a ter acesso a cultura vivida na aldeia.

Além disso, a cacique ainda precisa lidar com questões de gênero e batalhar diariamente contra o machismo, já que a maioria dos líderes indígenas são homens. Kerexu é a única filha mulher entre sete irmãos, mas sempre recebeu incentivo da mãe para estudar e buscar por espaço. Na aldeia, os impactos são menores, já que as próprias famílias a escolheram como líder, há mais de dois anos. Mas quando precisa sair e buscar melhorias para o seu povo, não é incomum a expressão de surpresa das pessoas quando descobrem sua posição.

“Quando eu vou sozinha é diferente, mas quando eu estou com o meu marido, que é o vice-cacique, e as outras lideranças, todos homens, a referência vai automaticamente no meu marido. Eu falo que todo dia é uma batalha, não é fácil. Parece que a gente tem que provar a cada dia que a gente tem força suficiente, que a gente é capaz, que a gente é inteligente também. É dificultoso, é essa herança sobre a questão do machismo, sobre a questão de gênero. Ela é muito incidente, é muito forte, eu sinto bastante. Mas uma das coisas que eu sempre falo: a mulher, seja indígena, nos quilombos, na sociedade que vivemos todos, é a base estrutural de uma comunidade. Se a gente não souber de que forma vamos manter essa estrutura saudável, ela vai desabar. Compartilhando uma fala de uma tia e da minha avó, que já é falecida, ‘se não for através de um corpo de uma mulher, de um útero, o mundo não existiria e não existirá’”, conta.

Mas a cacique ressalta que não acredita que a mulher tenha de estar à frente do homem, ou vice-versa. Para ela, os dois precisam caminhar juntos, pois “se um ou outro estiver a frente, o outro vai cansar mais”.

Kerexu se formou no magistério e atuou na escola indígena por dois anos. A cacique diz que, como líder, um dos ensinamentos que sempre busca passar é que “não adiantará nada buscar o conhecimento, o diploma, se vocês não se reconhecerem como um povo, se vocês não se reconectarem com esse chão que vocês estão pisando. Se eu não souber passar isso para as crianças, toda essa minha caminhada não teria o porquê”, conclui.

Fabiano Atenas e Juliana Kerexu foram os convidados da primeira noite do I Colóquio de Práticas da ESE, intitulado “Multiculturalismo: Relações étnico-  raciais”, que aconteceu no dia 24.fev.2021. A abertura do evento foi realizada pelas professoras Deisily de Quadros e Cristiane Benvenutti, com a presença da professora Dinamara Machado, diretora da ESE. Os debates do primeiro e segundo blocos foram mediados pelo professor Cleber Cabral e continuam disponíveis para acesso na página de Linguagens e Sociedade e canal da ESE.

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Autor: Nayara Rosolen - Estagiária de Jornalismo
Edição: Mauri König
Créditos do Fotógrafo: Herbert Bieser/Pixabay


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