A sociedade líquida, o crime e a ordem pública encontram o ativismo judicial
Todos nós sabemos, como cidadãos, que o Estado é o detentor do poder de aplicar as leis que regulam a vida em sociedade. Você sabe qual é o nome atribuído a tal poder? Visando a solução de conflitos de interesse, essa autoridade é chamada de Jurisdição.
Para aprofundar o debate a respeito da atividade jurisdicional na atualidade, há uma linha de pesquisa no Mestrado em Direito da Uninter especialmente dedicada ao tema. Esta linha esteve presente no ENFOC 2018 (Encontro de Pesquisa Científica) com o Grupo de Trabalho (GT) “Jurisdição e Processos na Contemporaneidade”.
“Nós conseguimos observar que nos vários ramos do Direito, o Judiciário e a atividade jurisdicional deixam muito a desejar, especialmente no que diz respeito ao Direito Penal, do consumidor. A gente percebe que ainda temos muito a progredir e avançar”, explica Andreza Cristina Baggio, uma das coordenadoras do GT.
A linha de pesquisa é uma crítica a essa jurisdição, trazendo propostas de melhorias para suas atividades. Exemplo disso são os trabalhos que foram apresentados dentro dessa categoria, envolvendo alunos de mestrado e também da graduação.
A graduanda Larissa Machado, voluntária no projeto de pesquisa, por exemplo, apresentou uma análise de algumas decisões dos tribunais referentes ao direito do consumidor. Com isso, foi possível perceber que houve alguns retrocessos e perdas nos direitos dos consumidores pelas decisões mais recentes do STJ.
“Os trabalhos foram de muita qualidade, demonstrando que nós estamos avançando bastante nas pesquisas aqui na Uninter. Eu fico muito feliz porque comecei com todo esse processo quando o mestrado se abriu, com o fortalecimento dos grupos de pesquisa. Fico muito feliz em ver essa evolução”, afirma Andreza. Juntamente com ela, o professor Daniel Ferreira também coordenou o GT.
Ordem pública: o que é isso?
O mestrando Paulo Silas apresentou três trabalhos que contribuíram com os debates do grupo: um deles trata do conceito da ordem pública; outro, do direito penal líquido; e, por fim, um trabalho que analisa a progressão de regime harmonizada.
A “ordem pública” foi o tema de sua dissertação de mestrado, defendida no dia 11 de fevereiro (o Uninter Notícias acompanhou a apresentação). No trabalho, Paulo fala sobre a insuficiência semântica do termo “ordem pública”, que, segundo ele, não apresenta um conceito concreto.
“A ordem pública é um conceito aberto, abstrato, portanto eu consigo transformá-lo em qualquer coisa. Eu posso acabar prendendo um indivíduo sob o argumento que mais me for conveniente, por exemplo, e isso abre margem para a discricionariedade gritante”, explica Paulo Silas.
De acordo com ele, esse é um apontamento crítico que nos faz refletir se as pessoas estão sendo presas como deveriam. “Já que não conseguimos nos livrar da ideia do cárcere, da prisão, nós estamos baseando isso de forma racional, legítima e devida? Eu penso que não”, afirma.
“Esse trabalho chama bastante atenção, ele faz uma crítica à falta de uniformidade da jurisprudência, essa insegurança jurídica que a gente vive. O STF também não tem posicionamentos muito claros a respeito de suas decisões”, comenta Andreza.
Líquido ou concreto?
O conceito de liquidez do sociólogo polonês Zygmunt Bauman também esteve presente em uma das apresentações de Paulo, que foi realizada juntamente com o professor Rui Carlo Dissenha. O conceito de liquidez de Bauman aborda a ausência de concretude das relações sociais na contemporaneidade.
“Ele demonstrou que no estado atual em que vivemos, já não temos mais bases concretas em relação a tudo, no amor, nas relações pessoais, na ideia de segurança e na ideia das coisas. Todas aquelas promessas da modernidade que não se cumpriram hoje se tornaram líquidas, porosas, penosas”, explica Paulo.
O mestrando aproximou esse ideia do Direito por meio dos conceitos do Direito Penal, pois um de seus grandes princípios – que talvez seja a sua base mais sólida – é a ideia do princípio da legalidade: uma lei anterior define qual conduta pode ser considerada crime. “Eu preciso saber como agir, se certa conduta é crime, e o Estado tem que me deixar ciente disso. Ele faz isso através das leis”, explica Paulo.
Segundo ele, porém, a atuação ativista do Judiciário brasileiro nos últimos tempos aponta para esse cenário de liquidez, o que pode ser decorrência do “decisionismo” judicial (leia aqui uma interpretação desse termo). “O Judiciário torna a ideia de concretude em líquido. Será que é a melhor saída relativizarmos ideias, concretudes, princípios e garantias em prol do bem maior?”
Regime fechado, semi-aberto e aberto
A progressão harmonizada de regime foi analisada em seu último trabalho. “Hoje nós temos a execução penal que decide como funciona cada progressão de regime. Nós temos no Brasil três espécies de cumprimento de pena: prisão (cadeia, regime fechado), regime semiaberto e regime aberto”, explica Paulo.
Segundo ele, com o nosso sistema carcerário falido, quando o condenado atinge o direito de progredir do regime fechado para o regime semiaberto, acontecia – e ainda acontece – de não ter vaga no regime aberto.
“Um preso que já cumpriu todos os requisitos para que seja transferido para o regime semiaberto, ele ainda não consegue ser transferido porque o estado não dá conta de cumprir a própria lei que ele criou. Por quê? Porque não tem vaga no regime semiaberto”, explica.
A orientação dada pelo STF nesse sentido foi de harmonizar esse regime quando isso acontecer. “De certa forma ele passa a cumprir no regime aberto, com monitoração eletrônica e uma série de requisitos para isso, até que surja uma vaga no semiaberto”.
Essa análise foi resultado de discussões de um grupo de pesquisa da Uninter. “A ideia do grupo de pesquisa era analisar a interação e os reflexos em que as decisões judiciárias repercutem no executivo e no âmbito do legislativo”, diz Paulo.
Em suas palavras, o Encontro de Pesquisa Científica foi um momento de trazer à tona essas discussões realizadas ao longo de 2018. “O ENFOC foi um evento maravilhoso, é a oportunidade em que a gente encontra pessoas, pesquisadores, professores, e que a gente tem para discutir os nossos problemas, as nossas pesquisas, fazer contato, sofrer críticas construtivas, receber sugestões e contribuir para o debate acadêmico como um todo, visando sempre que o debate não fique só ali fechado, no círculo da academia, e o ENFOC proporciona muito isso. Recomendo e convido a todos os pesquisadores do Brasil a participarem da próxima edição em 2019”.
Autor: Valéria Alves – Estagiária de JornalismoEdição: Mauri König / Revisão Textual: Jeferson Ferro
Créditos do Fotógrafo: Pixabay