A pedagogia do amor segundo João e Bernadete
Autor: Julia Siqueira - Estagiária de JornalismoQuem hoje vê os professores João Batista e Bernadete Campos nem imagina o longo caminho que eles precisaram percorrer para conquistar a formação superior. O casal de egressos do curso de Pedagogia da Uninter tornou-se referência na Educação Especial e na Inclusão Social de deficientes visuais na cidade de Macapá (AP), graças ao amor pelo ensino e à vontade de inovar. Mas teve que passar por muitos obstáculos para chegar lá.
O Uninter Notícias esteve no Norte do país, no final de agosto, para conhecer polos de apoio presencial (PAP) nos estados do Pará e do Amapá. Foi lá que encontramos os dois e pudemos conhecer sua história.
João, Bernadete e o IETA
João Batista de Jesus Pereira, nascido na cidade de Altamira (PA), tem baixa visão, um comprometimento visual que se caracteriza pela perda parcial da visão. Já a macapaense Bernadete Campos Isacksson tem retinose pigmentar, um conjunto de alterações genéticas que causam a degeneração da retina. Diferentemente de seu parceiro, Berna, como é conhecida, passou por um processo gradual de perda de visão, e hoje já não enxerga mais.
De acordo com o Censo Escolar de 2018, uma das pesquisas realizadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), mais de 1 milhão de alunos foram matriculados na educação especial, ramo da educação especializado em atender alunos com deficiências, transtornos globais e superdotação. Comparado a 2014, primeiro ano do censo, houve um aumento de 33,2%.
Ainda que sejam números muito significativos, Bernadete e João são provas de que as coisas nem sempre funcionaram desta forma. Devido à falta de acessibilidade e informação dos anos 80 e 90, ambos precisaram abandonar a educação básica quando mais novos.
Berna, por exemplo, parou de estudar aos 16 anos, sem concluir o ensino fundamental. “A deficiência começou a aparecer aos 11 anos de idade. Mas eu estudei até os 16 anos, que foi quando eu parei de estudar por conta da dificuldade maior, lá no instituto educacional do antigo território, que era o IETA”, explica ela lembrando que, nesta época, a educação especial já existia no estado, mas ainda era pouco acessível.
O instituto a que ela se refere é o antigo Instituto de Educação do Território do Amapá (IETA), que hoje abriga a Universidade do Estado do Amapá (UEAP), onde ela e João encontraram a oportunidade de cursar o magistério e concluir o ensino médio.
João tem baixa visão congênita, e desde muito pequeno a dificuldade de enxergar em sala de aula o acompanhava. Apesar do grande apoio dos pais para que concluísse o fundamental, ele parou de estudar aos 13 anos, dois anos antes de se mudar para a capital amapaense, em 1996.
Mesmo com todo esse tempo parados, nenhum dos dois desistiu da educação básica. No mesmo ano de sua chegada a Macapá, João matriculou-se em um colégio estadual na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA), e com acompanhamento da educação especial, conseguiu completar o ensino fundamental.
Já o ensino médio, o pedagogo cursou no IETA e diz que a dinâmica do próprio instituto foi muito importante e proveitosa para ele. “Ali, a gente tinha o apoio da educação especial, mas também tinha o apoio da própria turma, porque a gente sempre estava fazendo as atividades em grupo. Isso ajudava muita nas questões das leituras e produções de texto”.
Bernadete também retomou à escola em 1996, ano em que começou a se preparar para fazer o teste seletivo e estudar novamente no IETA. Ela lembra que ficou mais de um ano como ouvinte em sala de aula, até quem em 1998 conseguiu passar na seleção: “Fiz o magistério e consegui concluir os quatro anos, já com acompanhamento da educação especial”. O IETA é especial para os dois também porque foi lá que se conheceram, em 1998, através da própria educação especial.
“O João estudava à noite e eu estudava à tarde. E um dia a professora da educação especial que nos acompanhava perguntou se eu gostaria de ter um amiguinho para estudar à tarde junto comigo, porque eu tinha deficiência visual e esse aluno também tinha, só que estudava à noite. E aí eu disse que sim, que eu ia achar muito legal ter um companheiro. E nisso o João saiu da aula da noite e veio estudar de tarde. Nós nos conhecemos e passamos os quatro anos fazendo magistério juntos com uma grande amizade”, descreve ela.
Mas foi apenas em 2003, durante a primeira tentativa de graduação deles, que os sentimentos começaram a ficar mais fortes e o namoro começou.
Amor e educação crescem juntos
João e Bernadete terminaram os estudos no IETA em 2001 e, juntos, fizeram planos para iniciar uma graduação. A escolha, desde o início, foi o curso de Pedagogia. Eles contam que a decisão foi motivada pelo desejo de dar continuidade àquilo que já haviam aprendido nos últimos anos. Sem contar que ambos começaram a atuar no âmbito educacional pouco depois de concluírem os estudos, o que só reforçou a vontade de aprofundarem-se na área.
Em 2003, o casal ingressou em uma faculdade local, num curso semipresencial. Entretanto, por questões financeiras, desistiram logo no primeiro ano. Foram mais de cinco anos sem conseguir retomar a graduação, até que em 2010 os dois tiveram a oportunidade de prosseguir com a faculdade. Isso porque um amigo do casal, também deficiente visual, os incentivou a fazer o vestibular mais uma vez e a Uninter apareceu como a melhor opção.
“O que me chamou atenção na época foi a questão da qualificação dos professores, com relação a questão de titulação… mestres, doutores. Aí nos chamou um pouco a atenção e acabamos vindo. Fizemos as inscrições para o vestibular e iniciamos essa caminhada de quatro anos”, explica João.
A escolha continuou sendo a de licenciatura em Pedagogia, mas, dessa vez, por meio da educação a distância (EAD). Graças à experiência da primeira tentativa sete anos antes, João conta que a forma como os conteúdos eram trabalhados na EAD não foram uma novidade completa e que todo o processo de escolarização que ele pôde concluir depois de mais velho, já com a educação especial, se mostrou fundamental para que chegasse na graduação com uma base sólida.
“Nossa caminhada da escolarização, que é o fundamental e médio, também foi uma preparação. Não só na questão acadêmica, com conteúdos, mas também, sabendo que eu tenho a baixa visão, na construção de habilidades com relação ao uso do computador, o uso de recursos que a gente sabe que dentro da universidade são superimportantes”, afirma.
Mesmo com toda sua vivência e bagagem, foi inevitável que nesta nova jornada eles cruzassem com mais desafios. No início, a maior dificuldade que encontraram foi em relação à leitura. “Essa parte do esforço físico do nosso dia-a-dia também conta no nosso desempenho acadêmico. Ou seja: o simples fato de eu pegar um livro da Uninter para fazer uma leitura, já vem o cansaço visual. Então assim, uma pessoa que enxerga vai demorar mais para ter esse cansaço, mas um ‘baixa visão’, dentro de meia hora, uma hora, já está esgotado… E aí tem que dar um tempo, no outro dia ou mais tarde, para continuar a leitura”, explica João.
Nesses momentos, recursos como o NonVisual Desktop Access (NVDA), um software que faz a leitura sonora de textos escritos, e as videoaulas no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), disponibilizadas pela Uninter, eram de grande auxílio. “Ele lia para nós dois e nos momentos que ele não estava ou estava cansado, a gente acessava o NVDA. E aí o aplicativo ia fazendo a leitura do livro, por exemplo, e com isso a gente ia internalizando os conteúdos para fazer os trabalhos e as provas”, conta Berna sobre a rotina deles.
A dinâmica dos dois dava tão certo que até grupos de estudos foram se formando durante os anos da graduação. “Eu pegava o livro mesmo e lia, para a Berna e para outros que estivessem por perto, e ali a gente ia fazendo a leitura, lendo as questões que vêm nos livros né? Respondia e depois ia para o gabarito, que também tem nos livros, e ali ia trabalhando esta motivação na medida que a gente ia acertando as questões”, João relembra.
Outro ponto que eles destacam é o apoio do polo de Macapá. Eles contam que se sentiram muito acolhidos pelos profissionais e que a forma sensível, desde o vestibular, com que a instituição trabalha, os ajudou a não desistir da graduação. Muito desse acolhimento se deve ao Serviço de Inclusão e Atendimento aos Alunos com Necessidades Educacionais Especiais (SIANEE), programa de inclusão da Uninter que existe desde 2005.
Enfim, formados
O casal se formou em 2014 e já no ano seguinte iniciou a Pós-graduação em Educação Especial e Inclusiva, também na Uninter, que foi concluída no início deste ano (2019).
Hoje Berna e João trabalham no Centro de Apoio Pedagógico ao Deficiente Visual do Amapá (CAP-AP), como professora e orientador, respectivamente. O Centro de Apoio Pedagógico ao Deficiente Visual do Amapá foi fundado em 2001 e presta serviços tanto aos alunos com deficiências visuais, através de apoio e orientação, quanto com os professores das redes municipais e estaduais que pretendem atuar na educação especial.
Ambos são concursados desde 2006 e enfatizam, sempre que podem, o impacto que a graduação na Uninter teve no seu desenvolvimento profissional. “A universidade fez eu não me acomodar! Eu sei que existe um fazer pedagógico tradicional, que eu acho que a gente não pode perder de vista, mas dentro desse tradicional a gente pode fazer uma bagunça boa, no sentido de sair das quatro paredes da sala de aula”, comenta João.
Para ele, essa bagunça pode ir desde encontrar formar diferentes de ensinar o sistema braile, método de escrita e leitura para pessoas cegas, indo muito além da reglete (instrumento utilizado para a escrita manual do braile), até encontrar métodos e recursos pedagógicos que sejam capazes de trabalhar a consciência das pessoas em relação à inclusão da pessoa com deficiência visual.
Além de referências profissionais da educação inclusiva, João e Bernadete são fundadores e membros da Associação de Cegos e Amblíopes do Amapá (Acaap). O coletivo parte do princípio de que é extremamente importante ter um grupo para discutir as causas e necessidades dos deficientes visuais.
Além de promover a inclusão social do grupo, João explica que a Acaap defende os direitos das pessoas com deficiências visuais e apresenta ideias de desenvolvimento social. “Houve esse entendimento na época e realmente, a gente olha para trás e vê a importância das pessoas, no nosso caso especifico, cegas e com baixa visão, se organizarem e militarem sobre a causa”, afirma.
Por enquanto, o casal mantém os planos de mestrado apenas no papel, mas a vontade de continuar evoluindo na área educacional e de fazer a diferença na realidade amapaense continua firme, só aguardando a próxima oportunidade.
Autor: Julia Siqueira - Estagiária de JornalismoEdição: Mauri König
Revisão Textual: Jeferson Ferro
Créditos do Fotógrafo: Thailon Pinheiro
Que linda história!
Sou prova viva da competência e o compromisso que esse casal tem com educação do Estado do Amapá. Lembro-me até hoje do nosso primeiro encontro, confesso que foi um momento tenso, pois até então não havia trabalhado com alunos com deficiência visual, logo isso foi mudando, pois vocês juntamente com amigo Jodoval Farias nos ensinaram muito sobre práticas inclusivas.
Muito obrigado pelo aprendizado!!!!!