A mulher busca seu espaço no esporte

A luta mundial das mulheres por um espaço mais igualitário dentro do esporte não é recente. Além de buscar respeito e melhores condições de trabalho, as atletas também lutam por visibilidade na mídia, e nas últimas duas décadas têm conseguido mudar o cenário, ainda que lentamente.

Ainda se investe pouco em visibilidade e profissionalização do esporte feminino. Isso se reflete na lista dos 100 atletas mais bem pagos do mundo. No ranking divulgado pela Forbes este ano, apenas duas mulheres: as tenistas Serena Williams e Naomi Osaka. Em 2019, a ESPN dos Estados Unidos apresentou um ranking com os 100 atletas mais famosos do mundo. Além de Serena, outras duas mulheres figuraram na lista: Maria Sharapova e Sania Mirza.

Nesse contexto, as mídias têm um papel fundamental. As mulheres quase não têm espaço nos jornais e revistas. Segundo uma pesquisa realizada por Alejandro Martinez, as atletas e os esportes femininos aparecem em apenas 2,8% das notícias dos grandes veículos esportivos. E, na maioria das vezes, são mostradas mais pelos corpos do que pela atuação.

“É aquela ideia do papel de musa. A mulher no esporte é tida como musa, ela só pode estar ali se for bonita, se for para o olhar masculino. Isso já é bem problemático”, explica Fernanda Hagg, professora de História na Uninter e estudiosa do assunto.

Marina Aggio (foto) é professora de Educação Física da Uninter e atuou como jogadora de futebol profissional por 20 anos, com passagens pela seleção brasileira feminina. Ela lembra de um episódio em que uma equipe de jornalismo foi gravar uma matéria em um clube em que atuava. Os profissionais queriam uma imagem destacando mais a rotina de beleza das atletas do que o treinamento esportivo. A atleta se negou e acabou sendo multada pelo clube por se recusar a participar e ainda criticar a situação.

“Nós, enquanto jogadoras, que estamos debaixo do sol, da neve, do frio, não estamos preocupadas com a nossa linda imagem televisiva, mas com o desenvolvimento que a equipe vai ter durante os 90 minutos. De fato, as mídias estão buscando a mulher com uma outra vertente e não com aquilo que propriamente deveria ser feito”, salienta.

Com isso, Fernanda faz uma reflexão sobre como é esta situação dentro do próprio campo jornalístico, pensando na quantidade de mulheres que trabalham no esporte, qual papel fazem e se não estariam também inseridas em um tipo de padrão social, principalmente na questão racial. “Uma redação com diversidade vai produzir notícias diversas, vai dar atenção para outras perspectivas, você sai desse lugar comum”, completa a historiadora.

Quando se trata de competições, as Olimpíadas são um bom exemplo de como as mulheres tiveram que lutar por espaço. A primeira edição do evento, em 1896, não contou com nenhuma atleta feminina. Em 1972, na 17ª edição, 5.449 mulheres haviam participado em todas as edições até então. Só naquele ano, havia 6.075 homens. No Rio de Janeiro (RJ), em 2016, elas eram 4.700 dos 10.444 competidores. Ou seja, nunca houve uma igualdade na participação entre homens e mulheres.

No geral, em cargos de gestão, quase não se tem presença feminina, com participação menor ainda de mulheres negras. “A gente tem o encontro de dois mundos hegemonicamente masculinos, que é o mundo do esporte e o mundo da gestão. Em 2016, nas federações internacionais, apenas um quarto dos cargos dos conselhos executivos eram ocupados por mulheres”, afirma Fernanda.

Se o espaço de atuação dessas atletas é pequeno, quando se trata de condições de trabalho o cenário piora. Uma pesquisa divulgada em 2017, sobre jogadoras de futebol no mundo, aponta que o salário médio das atletas é de 600 dólares. Isso é ainda mais problemático quando se sabe que 50% não recebem e dois terços recebem um valor menor que a média. Além da questão financeira, 47% não tem contrato, 46% combinam a carreira com outro emprego e 90% podem largar o futebol antecipadamente.

Marina teve uma passagem de quatro anos pela Europa, entre 2004 e 2008. Ela conta que, ao voltar para o Brasil, começou a pensar sobre o que faria depois do futebol e então aliou o esporte aos estudos. Sabendo dessa instabilidade, a atleta decidiu investir na carreira acadêmica.

“A maioria das meninas terão um futuro muito difícil quando elas pararem de jogar futebol, porque elas ainda não entendem que estudar e jogar futebol podem ser feitos paralelamente (…) Eu tenho mais 30 anos de trabalho como docente, porque eu simplesmente não tenho registro na minha carteira”, ressalta.

Além destes desafios, Fernanda lembra que existe a violência de gênero. Muitas mulheres sofrem assédios e abusos, escutam diariamente discursos preconceituosos a partir do estereótipo de que mulher não entende de esporte ou não tem condições físicas e biológicas para atuar em tal área. Atitudes desse tipo acabam sendo reforçadas e naturalizadas.

“O esporte é um espaço generificado. Ele produz representações de gênero e é tido como um espaço masculino, de virilidade. E por isso se constitui como um ambiente hegemonicamente masculino. Só que a gente precisa lembrar que isso não é natural, foi construído sócio e historicamente. A gente precisa lembrar que a participação da mulher é uma subversão, está transgredindo uma norma. E ainda bem que elas transgridem essa norma”, salienta Fernanda.

Marina acredita que a evolução do futebol feminino está atrelada com a evolução da mulher na sociedade. Foi o que ela observou quando atuou no continente europeu, que já tratava a modalidade muito profissionalmente no início dos anos 2000. Para ela, a ida de atletas para o exterior fez com que elas trouxessem uma nova imagem da mulher no futebol. Isso refletiu no avanço que o esporte teve nas últimas duas décadas em nosso país.

Ainda não há muitas meninas em escolas base, devido à proibição por partes dos pais e até pela consolidação de gênero nos espaços, como o da educação básica. Nas aulas de educação física, por exemplo, os meninos é que jogam futebol. As meninas costumam preferir outro esporte ou nem mesmo recebem qualquer tipo de incentivo para jogar.

“Cabe a nós, professores de sala de aula, diminuirmos essas situações corriqueiras, mas que são muito visíveis na realidade das escolas. Enquanto eu for formadora, não posso permitir que o ambiente seja extremamente masculino para um esporte e extremamente feminino para outro”, afirma Marina. “Que nós permitamos que as práticas sejam democráticas, porque a partir dos nossos pequenos gestos, nós poderemos fazer as modificações nos setores esportivos, mas principalmente nos setores sociais da nossa sociedade”, completa.

Fernanda e Marina debateram sobre Mulheres e o campo esportivo no evento Multiculturalismo, da área de Linguagens e Sociedade da Uninter. A live foi transmitida através da página da área e do canal da Escola Superior de Educação da instituição, no dia 29.out.2020. O bate-papo foi mediado pela professora Mariana Bonat e segue disponível para acesso.