A lama nos reis da Espanha: o poder e as dinâmicas da monarquia contemporânea

Autor: Mariana Bonat Trevisan e Renan da Cruz Padilha Soares(*) 

Com arremessos de lama, pedras e aos gritos de frases como “fora daqui”, “assassinos” e “vão embora”, o rei Felipe VI Bourbon e a rainha Letízia da Espanha, junto ao governante valenciano Carlos Mazón e o presidente espanhol Pedro Sánchez, foram recebidos em 03 de novembro de 2024, no município de Paiporta. A visita da comitiva se deu por conta da trágica enchente que devastou a província de Valência e regiões do leste espanhol, deixando mais de 200 mortos.  

A população, que luta em meio à lama e sua devastação, buscando ainda encontrar sobreviventes ou corpos de familiares e conhecidos para enterrar, manifestava sua indignação com as autoridades e representantes políticos, os quais não teriam atuado de forma enérgica para a prevenção de mortes (pois o alerta teria sido emitido pelos funcionários regionais com horas de atraso) e também se mostravam incapazes de atender rapidamente as consequências do dilúvio.  

Receberam o protesto autoridades políticas de perfis bastantes distintos: os representantes da tradicional monarquia, o presidente ligado ao Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e o governante regional ligado ao Partido Popular da Comunidade Valenciana (PPCV – defensor da instituição monárquica, do regionalismo e de vertente liberal). Para a população, a materialização daquelas figuras, no epicentro de onde morreram mais pessoas por conta das fortes chuvas, significava, acima de tudo, que o poder que agora ali estava, não esteve antes, não os protegeu e não está os atendendo adequadamente.  

O governante regional seria a figura que seria mais culpabilizada na sequência do tempo, no entanto, é importante observar que a lama que acertou o rosto do rei e as mãos da rainha não gerou descontentamento nem fuga dos monarcas. Pelo contrário, eles não aceitaram o cancelamento da visita, permaneceram no local e procuraram ouvir e falar com populares (principalmente jovens e mulheres).  

 A fuga ou o descontentamento teriam sido desastrosos para uma monarquia que tenta recuperar sua imagem perante a nação. Felipe VI sucedeu seu pai em 2014, que abdicou em meio a escândalos de corrupção, depois de ter tido um papel auxiliador na transição democrática após a ditadura franquista, no final dos anos 1970. O ano de 2024 foi de comemoração dos 10 anos da coroação do rei Felipe, o que também não deixou de gerar protestos, como uma grande marcha contra a monarquia, ocorrida em 16 de junho, em Madrid. 

 O sentimento republicano cresce no país, em meio a tensões políticas (como a questão catalã) e econômicas. A imagem de fúria da população e a de um monarca enlameado, certamente contribui para o quadro de desprezo à monarquia. No entanto, a atitude do rei e da rainha demonstram justamente uma tentativa de reversão desse cenário.  

A aproximação com a população e suas questões é algo que as monarquias atuais, a exemplo mais evidente da monarquia britânica, buscam realizar, a fim de garantir sua relevância na sociedade, sua permanência no imaginário e sua própria permanência como instituição concebida ainda em tempos medievais – a despeito de seus valores elitizados, seus elevados custos e seu papel político diminuto.  Ao rejeitar seus guarda-costas, os reis espanhóis buscaram se colocar como os representantes verdadeiros do Estado junto à sua população.  

Na sequência, Felipe VI também presidiu o comitê de crise no governo, criando a impressão de que poderia ter um papel significativo na gestão da recuperação do desastre. Todavia, ele só tem poderes para representar a Espanha em visitas de Estados e uma função institucional nos processos pós-eleitorais. Na prática, portanto, terá pouco a fazer pela população valenciana e sua atitude permanecerá no plano simbólico, servindo apenas ao plano de representação da monarquia. Enquanto isso, aos moradores da região resta aguardar mais ações efetivas do Estado, retirar a lama, localizar e enterrar os seus mortos.    

*Mariana Bonat Trevisan é doutora em História Medieval e professora dos cursos de História, da Área de Língua e Sociedade, do Centro Universitário Internacional Uninter.   

* Renan da Cruz Padilha Soares é doutorando em Educação e professor dos cursos de História, da Área de Línguas e Sociedade, do Centro Universitário Internacional Uninter  

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Autor: Mariana Bonat Trevisan e Renan da Cruz Padilha Soares(*) 
Créditos do Fotógrafo: Reprodução redes sociais


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