A Covid levou Rafaela, mas ela deixa um mestrado e um marco na socioeducação

Autor: Nayara Rosolen - Estagiária de Jornalismo

Alegre, falante, de uma inteligência coletiva admirável e muito dedicada a pesquisas e trabalhos socioeducativos. Essas são algumas das muitas características marcantes apontadas por amigos e familiares da professora Rafaela Pereira da Rocha, que atuava no curso de Serviço Social da Uninter e integração da mesma área no Club Athletico Paranaense, cargos dos quais tinha muito orgulho.

O grande objetivo de Rafaela era ser doutora em tecnologias sociais, uma influenciadora de políticas públicas. Um sonho iniciado com a pesquisa de mestrado, mas que foi interrompido precocemente. No mês anterior à defesa da dissertação, que estava prevista para acontecer entre os dias 6 e 7 de maio, a então mestranda foi internada em decorrência da Covid-19 e faleceu no dia 6.mai.2021, aos 34 anos.

A coordenadora do Mestrado em Educação e Novas Tecnologias, Siderly Almeida, conta a impressão que teve da pesquisadora no primeiro e único dia de aula presencial, antes do início da pandemia. “Eu, na frente da sala de aula, e ela com aquele olhar de encantamento, alegria por poder estar ali, vislumbrando a história que queria”, lembra. Verinha Pontarolo, mãe de Rafaela, diz que a filha “amava estudar, era muito boa com isso”.

Mais do que almejos profissionais, a mestranda também buscava melhorar de vida com o título de mestre, para poder oferecer uma base melhor para a família. “Ela gostava muito dessa família”, comenta a professora Luana Wunsch, orientadora de Rafaela no mestrado. “Eu tenho sentido muita falta dessa generosidade e amizade”, salienta.

Rafaela desenvolveu o trabalho Observatório Digital ‘Aicesso’ – Atuação de impacto social de cunho educacional e social – socioeducativo e queria defender na data mais próxima ao Dia do Assistente Social, comemorado em 15 de maio. Seria uma homenagem e presente aos colegas da mesma área.

Em reconhecimento à pesquisa realizada pela docente, Luana, em acordo com o colegiado do programa de pós-graduação, fez a defesa póstuma da dissertação na tarde de 19.mai.2021. O evento, realizado de forma remota, reuniu mais de 80 pessoas em uma webconferência que durou pouco mais de uma hora.

Na banca, os professores Ivo Both e Jorge Bernardi, da Uninter, e a professora Claudia Bordin, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). A presença de Both e Bernardi na banca tinha sido um pedido pessoal de Rafaela, devido à admiração que tinha pelos profissionais e a atuação que desempenham. Both elogiou Luana e a coordenação do programa pela atitude “tão bonita” de valorizar o ser humano e realizar o momento “de maneira humana, honesta, gloriosa”.

Também marcaram presença os amigos, colegas de trabalho e familiares da mestranda, como o marido, Rodrigo Rocha, e a mãe, Verinha Pontarolo.

“Apesar da nossa tristeza, é um momento festivo. Algumas pessoas são importantes, outras muito importantes, e pessoas como a Rafaela faz parte daquelas que são imprescindíveis, porque vai deixar para nós um trabalho por escrito que fará com que ela jamais seja esquecida. Saibam que ela certamente está ao lado de Deus e não sairá do nosso pensamento”, garante o professor Nelson Castanheira, pró-reitor de pós-graduação, pesquisa e extensão da Uninter.

“Todo mundo sabe o quanto Rafaela era boa por natureza, mas eu queria enfatizar o quanto ela era boa pesquisadora na área educacional. Dedicava tempo, esforço e tinha um talento nato para as aplicações. O ano de 2020, apesar de muito dolorido, foi muito produtivo para ela na área acadêmica”, elogia Luana.

Rafaela dedicou o trabalho à mãe, “mulher de luta, trabalhadora, que sacrificou sua vida e sonhos em prol das realizados e felicidades de seus filhos”. Ao esposo, “que mesmo sem compreender apoiava, com o coração partido, sua preocupação, carinho e incentivo”. E, por fim, ao professor Dorival da Costa, que foi coordenador do curso de Serviço Social e faleceu no início deste ano. “Meu eterno coordenador, por incentivo e acreditar em meu potencial”.

Ainda deixou agradecimentos a Luana, “grande e verdadeira mestre, que realmente sabe orientar, potencializar, acreditar e investir no ser humano em processo de formação acadêmica no mestrado. Seu amor e dedicação iluminaram esta caminhada”. Em retribuição, a orientadora diz: “Mal sabia que era ela quem sabia escrever e era tão fácil orientar a Rafaela”.

Observatório Digital “Aicesso”

Rafaela via problema em projetos sociais e educacionais do Brasil, que normalmente são separados. A profissional visava unir a tecnologia como suporte para o mapeamento e reconhecimento de instituições inovadoras e socioeducativas. Como objetivo central, queria desenvolver um protótipo de observatório digital, para que as instituições pudessem se cadastrar e ter noção do impacto que geram na sociedade em que atuam.

O trabalho tem o intuito de desmistificar o conceito socioeducativo e, depois de realizar uma revisão sistemática de literatura, a mestranda mapeou boas práticas e projetos inovadores que têm foco no impacto socioeducativo, em todo o Brasil. “Não era só mapear e encontrar essas instituições, mas ajudar a se reconhecer como impactantes e divulgadoras sociais”, conta Luana. Foram encontradas mais de 1.200, sendo 119 na região Norte, 249 no Nordeste, 156 no Centro-Oeste, 387 no Sudeste e 298 no Sul.

Luana pontua que o forte da dissertação é o desenho de dez indicadores socioeducativos. “Acredito que possam realmente ficar para a literatura tanto do serviço social quanto da educação”, afirma. Entre eles, o desenvolvimento social territorial; inclusão social e ampliação da cidadania e dos direitos humanos; acesso a serviços e políticas públicas e sociais; acesso a informações e direitos sociais; redução de desigualdade social; bens socialmente produzidos; desenvolvimento socioeducativo; oportunidade de emprego e renda; bem como de formação profissional inicial e/ou continuada e/ou técnica; e formação e aprendizagem significativa ao longo da vida. Este último, “o queridinho da Rafaela”.

Dentro do Aicesso, as instituições poderiam se apresentar, depois de cadastradas, e observar em qual indicador mais está avançada ou em qual precisa de ajuda social ou política para dar continuidade aos projetos. Para cada indicador, a própria plataforma daria melhores orientações sobre como proceder com as melhorias. O espaço também agiria como ponto de encontro para autoavaliação, avaliação de companheiras da mesma área e colaboração entre estas.

Claudia Bordin ressalta a generosa revisão bibliográfica das instituições socioeducativas e do contexto brasileiro, e diz que  “a escrita cadenciada e a forma política de assunção do tema, costurada a uma visão de educação e sociedade do Brasil, nos permite compreender as inciativas históricas que relacionam educação e serviço social, que evidenciam as lacunas e diversas contradições entre os interesses de uma sociedade igualitária, justa e as demandas necessárias para iniciativas como essas que vão pretender diminuir as desigualdades, a finalidade maior dessa pesquisa”.

“Estamos fechando o mestrado da Rafaela no protótipo, que daria continuidade no doutorado, com a aplicação do desenvolvimento dessa ferramenta. Ela queria muito que esse observatório digital estivesse conectado com a Fundação Wilson Picler, aqui da Uninter. Quero muito que esse trabalho vingue, porque não é da Rafaela, da Rafaela com a professora Luana e, principalmente, não é só do programa. É, como o próprio nome diz, de impacto social. Falávamos muito sobre isso, queremos publicar essa dissertação e dar continuidade em alguma base de aplicação. Esse era o grande desejo da Rafaela, que o observatório digital socioeducativo vingasse”, conclui a orientadora.

O vice-reitor da Uninter, Jorge Bernardi, lembra que um dos 20 objetivos da Fundação Wilson Picler é “desenvolver e fomentar pesquisas aplicadas voltadas à modernização de sistemas de gestão pública e privada, produção e divulgação de conhecimentos técnicos e científicos”, onde “cabe perfeitamente” o trabalho desenvolvido pela professora Rafaela. Bernardi também sugere um novo nome para a ferramenta: Observatório Digital Socioeducativo Rafaela da Rocha.

“Vai ficar imortalizado e ser um referencial para todas as entidades brasileiras e internacionais que querem saber em que nível está a sua atuação na área socioeducativa”, conclui Bernardi.

Questionada por Both, Luana diz que, academicamente o trabalho significa “a possibilidade de pessoas que estão na pesquisa científica, mas principalmente em campo com projetos sociais, lerem e terem uma otimização da sua prática enquanto formadores de pessoas nessa sociedade tão carenciada do Brasil. Rafaela realmente via como um ponto de início de partida, como base e ponto de encontro de melhoria das práticas desses profissionais tão sofridos, do serviço social e da educação, que realmente não pensam só no bem-estar individual, mas no coletivo”.

Claudia lembra um trecho do livro Pedagogia da Tolerância, de Paulo Freire, em 1996. Na obra, o autor diz: “Eu tenho sido educador à disposição do sonho, da utopia da libertação. Esse tem sido meu grande sonho. Aos 74 anos, eu me recuso a não sonhar, o sonho faz parte da minha natureza inconclusa e da consciência da minha inconclusão. Sonhar com projeto de vida, com projeto de sociedade (…) Quando tu me perguntas ‘tu ainda sonhas’? Eu respondo: sim, eu sonho. Eu sonho no mínimo que não seja possível dizer que não é possível sonhar, com que não seja possível admitir que a vida tem que ser o que está sendo. Não, eu protesto. A vida não é o que está sendo, ela pode e deve ser mudada”.

Rafaela buscava mudança, na própria vida e na realidade do mundo ao redor. “Não aceito que milhões e milhões de brasileiros morram porque têm que morrer. E não aceito que eles continuem morrendo para que minorias vivam o gosto ilegítimo que deram a si mesmo”, finaliza Claudia, com a leitura do texto.

Rafaela foi aprovada pela banca, “com louvor e excelência”, recebendo o tão desejado título de mestre. “Tenho certeza que onde ela estiver, está vendo esse momento, está com a gente. Merecidíssimo o título, é a nossa mestre Rafaela e foi um grande prazer conhecê-la, um grande orgulho tê-la no nosso programa”, conclui Siderly.

Incorporar HTML não disponível.
Autor: Nayara Rosolen - Estagiária de Jornalismo
Edição: Mauri König
Créditos do Fotógrafo: Reprodução


2 thoughts on “A Covid levou Rafaela, mas ela deixa um mestrado e um marco na socioeducação

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *