A Bíblia é um documento histórico?

Autor: Nayara Rosolen - Estagiária de Jornalismo

A utilização da Bíblia como um documento na operação historiográfica para a reconstituição da história ainda é uma interrogação para muitos profissionais. O historiador Marcelo Rede, professor na Universidade de São Paulo (USP), explica que esse é um campo que passou por uma revolução nas últimas décadas, mas que acumulou um debate “exaustivo e acalorado” com o decorrer do tempo e ficou marcado por uma “falsa impressão de assunto encerrado”. Para o pesquisador, esse é um tema que suscita vários problemas e, portanto, merece atenção dos historiadores.

Marcelo utiliza o caso da história do Israel Antigo, a Bíblia hebraica e o Egito para abordar o assunto na primeira noite do 2º Seminário virtual sobre o Antigo Egito, realizado pela área de Linguagens e Sociedade da Escola Superior de Educação (ESE) da Uninter. A abertura do evento foi realizada pela coordenadora de área, Deisily de Quadros, a diretora da ESE, Dinamara Machado, e a professora Maria Thereza David João, que mediou todo o bate-papo do dia 9.mar.2021.

A história do Antigo Israel se fazia quase que exclusivamente a partir da Bíblia e, de acordo com o profissional, esse procedimento diluía a diferença entre o relato documental e a reconstituição historiográfica moderna do século 19, que constituiu o saber feito a partir de fontes. “É por isso que eu costumo dizer que a história do Antigo Israel é a mais mal escrita da Antiguidade”, completa.

A historiografia tradicional é caracterizada por ser uma “paráfrase do texto bíblico”, assim a história era feita com a Bíblia e a partir da mesma. No século 19 e parte do século 20, esse campo se apresentou centrado em eventos políticos e em paralelo com forte conotação religiosa. A relação entre uma comunidade e uma divindade estava no centro, eixo da trajetória.

Apesar de existir visões intermediárias, há uma dicotomia entre maximalistas e minimalistas. O primeiro grupo, mais conservador, insiste na validade de um paradigma de que “a Bíblia lastreava de modo direto a reconstituição historiográfica”. Já os minimalistas questionam e negam qualquer valor documental, a minimizam como utilidade histórica. Eles ainda apontam problemas como relatos tardios, o fato de não saberem a procedência da composição e transmissão das narrativas, além da dependência dos historiadores sobre um único texto complexo, que data da Idade Média.

O profissional diz que o segundo grupo tem razão em praticamente todos os aspectos que apresentam, mas deixa clara a “convicção de que não somente é possível essa inserção dos relatos bíblicos na operação historiográfica, como é mesmo necessário”. “Me parece que nenhum desses problemas é suficiente simplesmente para eliminar, abrir mão, seja como documento, seja como fenômeno social”, salienta.

A Bíblia é um fenômeno social, explica o pesquisador. É produto resultante de várias relações do meio, mostra projetos e interesses de camadas sociais, é um agente do processo histórico e atua sobre a realidade. Importante pensar sobre os textos e os contextos com os quais estavam relacionados. Ele afirma ainda que há várias dicotomias entre o livro e a história de Israel, por exemplo entre o falso e o verdadeiro, o mito e a realidade, o factual e a ficção, a memória e a história. Dessa forma, esse debate dicotômico era excludente. Os grupos, extremistas, descartavam a visão do outro lado.

Segundo Marcelo, o potencial documental da obra era descartado por ser considerado ficcional, mitológico, lendário, uma construção memorial sobre o passado que não tem base na realidade. E o profissional afirma que, sim, “essa caracterização a princípio é verdadeira”. Mas questiona se todas essas categorias não são, ao mesmo tempo, fenômenos sociais. Ele diz que é justamente por terem essas características que devem ser integrados na operação historiográfica.

“Não para serem aceitos como dados, e nem pelo seu valor de face factual evidentemente, mas para serem problematizados pelo historiador, como questões a serem explicadas. Se perguntando o porquê desse mito, quais foram os mecanismos que proporcionaram o surgimento dessa ficção, quais foram as situações e as forças sociais que levaram a formação de uma memória coletiva, uma memória cultural. Se perguntando o porquê essa memória cultural foi necessária num momento dado específico e como pôde responder a essa necessidade do grupo de reter alguns elementos, canonizar num discurso e, ao mesmo tempo, deixar de lado e esquecer outros”, conclui.

A palestra completa do professor Marcelo sobre o tema “Egito e Israel: a Bíblia como documento?” segue disponível para acesso, na página de Linguagens e Sociedade e no canal da ESE.

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Autor: Nayara Rosolen - Estagiária de Jornalismo
Edição: Mauri König
Créditos do Fotógrafo: Oskiles/Pixabay e reprodução


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