Qual é o papel das religiões no espaço público?
Autor: Nayara Rosolen - Estagiária de JornalismoO Brasil, um país que se estabelece como Estado Democrático de Direito, possui na Constituição a garantia de espaços plurais, com a promoção do bem-estar para todos, independentemente de sexo, raça ou crença. Mas é também composto por uma população majoritariamente religiosa, com suas diferentes concepções acerca da vida e diversas manifestações da fé.
Para discutir a importância dessa identidade e como ela é expressada no cotidiano, o 3º Colóquio de Práticas da Escola Superior de Educação (ESE) da Uninter, promovido pela área de Humanidades, centrou-se no tema Religião e Religiosidades. “A relevância não se dá em virtude de as religiões serem majoritárias, mas na importância do aprendizado, da convivência, do respeito às diversidades religiosas e às pessoas que convivem a partir de uma concepção não-religiosa”, explica o professor Adriano Lima.
Os convidados do dia 09.jun.2021 são Cesar Kuzma, doutor em Filosofia e presidente da Sociedade de Teologia e Ciência da Religião (SOTER), e Rudolf von Sinner, doutor em Teologia e coordenador do programa de pós-graduação em Teologia na PUC-PR. Os especialistas debateram sobre os temas Religião e cidadania e Laicidade e a religião no espaço público, em transmissões realizadas pelo Facebook e Youtube, que contabilizam até o momento mais de 1,2 mil acessos.
O coordenador de área, Cícero Bezerra, explica que objetivo é trazer à tona “temas relevantes e importantes relacionados com os diferentes cursos de Filosofia, Sociologia, Ciências da Religião e Teologia. A gente tenta fazer uma argumentação e uma atividade interdisciplinar para abordarmos o tema”.
Religião e cidadania
As ideias de religião, com peso histórico e importante tradição, assim como as múltiplas religiosidades e expressões culturais, que caracterizam os brasileiros como um povo e que constroem um modo de ser, são comumente confundidas. E, apesar da necessidade de definir o que significa um termo ou outro, são coisas que andam juntas e se entrelaçam pelo caminho.
Cesar Kuzma diz que o Brasil passa por um processo de secularização, em uma dinâmica plural na forma de constituição, mas que ainda é marcadamente desigual. E, em todas as suas camadas, é possível observar a presença do espaço religioso. “Falar de religião no Brasil é levar em conta todo um histórico que passamos e que vem sendo construído, levar em conta toda a riqueza dos nossos povos, seja dos originários que aqui estiveram e persistem para manter viva sua própria identidade, seja das colonizações e das existências que se fazem presente”, complementa.
Em um país maciçamente cristão, o cristianismo possui muitas faces e características. Neste ponto, o filósofo chama atenção para o papel que as religiões ou os religiosos desempenham para a construção de um espaço cidadão, democrático, protetor e garantidor de direitos. A religião está inserida na sociedade e, justamente por isso, responde e é chamada a ter uma prática de responsabilidade, seja na condução da cidadania ou no papel de possibilitar espaço e voz às minorias silenciadas pela história, que precisam ser “fomento de esperança”.
“Muitas vezes, o próprio exercício e espaço religioso é manipulado com outras intenções e práticas que não a finalidade primeira da religião e nem aquilo que nos garante como sociedade. Em um país como o Brasil, a maior riqueza é a vida e a cultura do seu povo, só que essa vida e cultura popular nem sempre são abraçadas. Muitas vezes, elas são utilizadas com outra finalidade, escravizando essa população em outras questões e sequelas que nem sempre favorecem a vida, a liberdade, experiências que constroem espaços de cidadania”, afirma Kuzma.
Rudolf von Sinner lembra que a cidadania em termos de religião tem uma forte origem no Brasil, com a Teologia da Libertação, que surge durante os anos de ditadura cívico-militar (1964-1985), um período em que não existia um espaço público com a sociedade civil ativa e aberta. Esse ambiente precisou ser conquistado, a partir de comunidades eclesiais de base, pequenos grupos da igreja católica que se encontraram nos âmbitos rurais e nas periferias da cidade. Não só para falar sobre fé e ler a Bíblia em conjunto, mas sobre questões que assolavam a vida diária.
“Cidadania não tem só a ver com passaporte ou nacionalidade, nem só com conjunto de leis. Tem a ver com efetividade, acesso àquilo que a lei assegura e nem sempre a realidade traz. Questões de educação, saúde, trabalho, aceitação social”, salienta.
De acordo com o teólogo, a redemocratização do país abre um espaço intermediário, entre o mundo da vida, no cotidiano, e o mundo político. No meio disso, há grupos que se formam por iniciativa voluntária e que visam aprimorar a cidadania e conquistar direitos. Para Sinner, ficou visível em suas pesquisas que, se não houvessem duas instituições muito arraigadas na população brasileira, as pessoas não conseguiriam sequer sobreviver. São estas a família e as igrejas, porque o Estado não consegue dar conta das obrigações que possui, por várias razões.
“Em todos os lugares, tanto nos mais auspiciosos quanto nos mais esquecidos, tem igreja, que constrói comunidade, dá possibilidades de choro, riso, casamento, aprendizagem, apoio mútuo. As igrejas têm uma fantástica estrutura, todas elas, de alcançar uma população onde o Estado muitas vezes não chega.”
Sinner lembra ainda que, com uma diversidade cada vez maior de igrejas e religiões, é fundamental que convivam na mesma sociedade e consigam articular as necessidades próprias, sem que resulte em violência, conflito, ódio, rejeição ou competição.
“Dentro da minha tradição luterana cristã, meu objetivo não pode ser de ocupar espaço. Meu objetivo deve ser, como pastor, cristão e teólogo, ajudar para que a contribuição das igrejas e das religiões seja visível de forma positiva em prol do bem comum da sociedade. E que se respeite essa diversidade, não só porque o Estado laico e plural obriga, mas porque a prática de Jesus obriga. Jesus nunca rejeitou pessoas de outros países, culturas, religiões. Jesus sempre ultrapassa essas fronteiras e, portanto, reestabelece relações e pessoas excluídas da sociedade para o meio dela”, conclui.
Laicidade e a religião no espaço público
Quando se fala em Estado laico, é preciso retornar a um tempo histórico, por um olhar ocidental, em que a religião estava na base da estrutura social e tudo o que se fazia ou deixava de fazer tinha a religião e sua verdade como base. Havia um Estado com visão sociedade dominada ou abraçada pela compreensão religiosa. Com o passar dos anos, surgem outros espaços e novas compreensões de verdade. Na busca por uma autonomia, há uma separação e a percepção de que existem outras questões da sociedade que não devem conviver em conflito com a religiosidade.
Com a autonomia da pessoa e a autonomia da cidade colocadas cada qual no devido espaço, nenhuma verdade é anulada, apenas não é permitido que uma se imponha sobre a outra, como algo que regule o viver, o conviver e o estar de cada pessoa. Assim, quando há um discurso em favor da laicidade, não é algo que se coloca contra a religião, mas que tenta garantir a autonomia do espaço religioso, que convive com a autonomia da própria sociedade e das pessoas que nela estão.
“Proteger a laicidade é proteger a democracia onde teremos um espaço em que crentes e não crentes convivem e que vão caminhando, construindo a sua própria sociedade. O problema está em quando uma estrutura social quer negar a existência, a presença ou qualquer situação que tenha um cunho de natureza religiosa. Ou quando a religião quer se impor como uma normativa da condução social. A religião não ocupa o lugar do Estado, o Estado não ocupa o espaço da religião. Mas a religião pode cooperar e favorecer um diálogo amplo com as instâncias do Estados, e também o Estado pode se alimentar e ter um bom diálogo com as estruturas religiosas, não se limitando a uma, mas com o conjunto de situações que se fazem presentes”, salienta Kazmu.
Para o filósofo, o que alimenta o povo dentro de um regime democrático é a capacidade de dialogar e respeitar os diversos espaços e atores que fazem parte da dinâmica social. Ainda assim, no Brasil, esse limite é rompido em algum momento, quando grupos que se dizem religiosos ocupam espaços do Estado e procuram legislar em favor de determinada crença.
“Isso acaba sendo contrário à natureza da própria religião em si e da própria condição de sociedade e Constituição. São pontos que temos que trabalhar. Religião, laicidade e democracia são três temas unidos e que hoje vêm à tona e que nem sempre sabemos o que é um e o que é outro, como eles interagem e como podemos apontar caminhos e horizontes dessa reflexão”, pontua.
Sobre a polarização que se vê cada vez maior e mais presente na sociedade, Sinner acredita que, além de ser sempre negativa, é também excludente e cria a violência, com a fomentação do ódio, “que é o que a gente, de modo algum, quer e não deve querer”.
Segundo o teólogo, a conversa é fundamental, pois a partir dela “a gente conhece a humanidade do outro”. “Isso, para mim, é a coisa mais básica. Reconhecer o outro no seu ser, que é algo completamente arraigado na prática de Jesus e também outros elementos de Bíblia, no caso do cristianismo. Nós temos que conviver nesse pluralismo que veio para ficar. Façamos isso de forma colaborativa, para que todos possam vivem bem e não de uma forma conflitiva e odiosa”, finaliza.
O bate-papo completo segue disponível para livre acesso.
Religião e religiosidades sob a perspectiva das mais diversas áreas
Diversos assuntos acerca do tema seguiram em debate no dia seguinte, 10.jun.2021. Desta vez, cada área da ESE expôs os respectivos tópicos individualmente, com a apresentação de professores da Uninter, além da participação de estudantes e exibição de portfólios.
A área de Humanidades deu continuidade com um bate-papo sobre Religião e religiosidades: conhecer, respeitar e conviver. Linguagens e Sociedade abordou Religiões e Religiosidades nos contextos escolar e Sociedade e Multiculturalismo, diversidade e intolerância religiosa. Em Linguagens Cultural e Corporal, os professores falaram sobre Religião e religiosidade como objeto de pesquisa e do ponto de vista do patrimônio cultural.
Na área de Educação, o debate se deu acerca da Religiosidade como elemento de desenvolvimento humano e o diálogo inter-religioso e Religião e religiosidades nas práxis pedagógicas. As Exatas abordaram as Relações entre Ciência e Religião. Já as Geociências, apresentaram A contribuição do diálogo inter-religioso. Enfim, a EJA debateu sobre Ecumenismo e Cultos afro-brasileiros.
Autor: Nayara Rosolen - Estagiária de JornalismoEdição: Mauri König
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