Eu, você e a pós-verdade nossa de cada dia

 

OPINIÃO: Jeferson Ferro – Professor de Jornalismo

Apesar da celeuma provocada pelo tema nos países anglófonos, parece que aqui no Brasil a ideia de pós-verdade não colou. Comentaristas de primeira hora trataram o tema como se fosse uma afetação de gringo – “pós-verdade não passa de lorota”. Talvez seja porque estamos tão acostumados a viver em uma realidade que beira o absurdo – rios de dinheiro desviado dos cofres públicos, barbárie medieval nos presídios, carne estragada na merenda escolar etc. –, ou porque a mentira e suas múltiplas formas já se tornaram patrimônio cultural entre nós. O fato é que, entre nós, ficou a impressão de que essa história de pós-verdade não passava de um remake da boa e velha mentira.

Muito já se falou sobre a vida numa bolha de opinião única criada pelas redes sociais. A dinâmica de reforço contínuo a posições extremistas tem um resultado conhecido: o efeito estufa do radicalismo. E daí para a xenofobia, o racismo descarado, a apologia ao estupro e outros disparates, até que Brexit e Donald Trump aconteceram. Mas seriam as bolhas do Facebook as culpadas por abrir as portas dessa jaula, enterrando a “verdade” debaixo de um manto de ignorância barulhenta? Uma análise cuidadosa pode nos mostrar que esse problema tem origens mais profundas.

A filosofia é a busca da verdade. Filosofar significa trilhar um caminho de questionamentos em busca da melhor resposta às dúvidas que nos atormentam. A ciência, que nasce da filosofia, não faz outra coisa: emprega todos os recursos disponíveis para chegar à melhor solução possível a seus problemas. Esta resposta, então, passa a ser tida como a “verdade” – sempre provisória, não esqueçamos disso. Para a ciência, nada é inquestionável. Quer contestar a Lei da Gravidade? O quadro-negro é todo seu. Verdades científicas precisam passar por um teste duro para conquistar seu status e estão sempre sujeitas a perdê-lo.

Felizmente, tais “verdades provisórias” decidem muita coisa importante em nossas vidas – desde a física que coloca um avião no ar à biologia do antibiótico que nos salva a vida. Mas às vezes elas contrariam interesses (quando não a fé) de muita gente, o que gera conflitos. Um exemplo foi a descoberta de que o fumo causa câncer, nos anos 50, combatida pela indústria tabagista com uma contraofensiva de marketing – médicos eram convidados a “desmentir” publicamente os dados da pesquisa. Até a teoria da evolução das espécies, cientificamente incontestável, ainda hoje é negada por muita gente.

Se afinal foi possível convencer a sociedade de que o tabaco realmente causa câncer, hoje em dia convencer as pessoas de que há um processo de aquecimento global no planeta, ou de que a Previdência brasileira precisa de uma reforma urgente, por exemplo, parece missão impossível, apesar da montanha de evidências por trás dessas ideias. Aí é que entra essa tal de pós-verdade.

O sociólogo Zygmunt Bauman, falecido em janeiro, popularizou o conceito de “liquidez” para definir a vida moderna: nossas vidas são fluidas, desprovidas de parâmetros ou modelos estáveis em todas as suas instâncias. O cenário é de total insegurança e não temos mais certeza de nada. A web, essa jovem na casa dos 20, tem grande culpa nessa história. Ela é a pedra fundamental do processo de disseminação aceleradíssima de informações que tornou quase impossível prever qualquer coisa para além da próxima semana. É na internet também que o papel dos gatekeepers, os filtros de conteúdo, se dissolveu – tudo passou a ser publicável. On-line, o texto do seu vizinho brucutu pode ter alcance muito maior que o ensaio de um renomado especialista escrevendo sobre o mesmo tema.

Mas, se queremos realmente encontrar o berço da pós-verdade, precisamos recuar um pouco mais no tempo, uma década antes do surgimento da web. O professor Andrew Calcutt, da East London University, em artigo recente, atribuiu a culpa da situação atual aos intelectuais de esquerda e sua cartilha pós-modernista, que ganhou proeminência nos anos 80 com o programa de desconstrução das “verdades”, que passaram então a ser entendidas como meras narrativas de poder.

A partir desse momento foram se desfazendo, um a um, os conceitos que balizavam nossa existência: gênero, raça, identidade, valores estéticos, a história. Quando não eram radicalmente implodidos, eram ao menos relativizados por análises que condicionavam seu valor a pressupostos ideológicos. Houve casos de alunos que se negaram a ler Shakespeare em universidades dos EUA – o argumento: ele era um homem branco.

Por um lado, esse movimento causou um tremendo choque de liberdade que, entre outras coisas, deu voz a setores da sociedade antes silenciados. Também abriu novas e instigantes possibilidades de compreensão da realidade e das estruturas de poder, propostas por pensadores como Michel Foucault e Jacques Derrida. E isso foi muito bom. Por outro lado, ao desembocar na relativização de tudo, o projeto pós-moderno reduziu o pensamento ao estatuto de condicionamento ideológico, extirpando a noção de verdade de seu horizonte.

Se tudo é relativo, se todas as verdades são meros produtos de linguagem, então, no fim das contas, as disputas de poder na sociedade passam a ser uma questão de quem grita mais alto, de quem arregimenta o maior número de seguidores – curtiu? Com a água do banho, foi-se o bebê: perdemos a possibilidade de adotar parâmetros minimamente definidos a partir dos quais se pudesse discutir problemas que são comuns a todos.

Outro britânico, o documentarista Adam Curtis, em HyperNormalisation, de 2016, explica como os políticos passaram a construir narrativas inverídicas como estratégia para se esquivar dos problemas reais. O episódio da invasão do Iraque seria um exemplo dessa dinâmica de manipulação da opinião pública que, sem qualquer pudor, joga os fatos literalmente na lata de lixo.

No Brasil, o narrador de Cronicamente Inviável (2000), filme de Sérgio Bianchi, já se perguntava: “O que é mais importante: explicar a realidade ou convencer?”. A questão, como vemos, não é essencialmente nova. Parece claro que nas últimas décadas o “convencer” vem ganhando de lavada. Em nosso canto dos trópicos, o debate político tem se concentrado na defesa de narrativas antes por força do grito que pelos argumentos.

Quando foi a última vez que conseguimos debater qualquer tema nacional partindo de um ponto de comum acordo, fazendo mediação entre posições antagônicas e buscando uma solução de consenso? Não temos sido capazes nem sequer de concordar sobre a existência do déficit da Previdência. Será que a própria realidade dos números é uma questão de viés ideológico? Afinal de contas, não é possível afirmar categoricamente se existe ou não um déficit na previdência pública do país?

Talvez o momento de ruptura no Brasil contemporâneo tenha sido o caso do mensalão. Quando houve o estouro do escândalo, em 2005, o presidente Lula chorou em público e disse que o PT devia desculpas à nação. Poucos dias depois, já refeito do baque, nosso líder começou a defender a ideia de que tudo aquilo não passava de uma grande armação, que jamais houvera mensalão e que ele mostraria a verdade ao povo brasileiro. Prometeu que, assim que deixasse a Presidência, viajaria por todo o Brasil “provando que o mensalão nunca existiu”. Alguns anos e muitas condenações depois, a estratégia do PT continua a mesma: redobrar a aposta na narrativa de que tudo se resume à perseguição política.

A pós-verdade não é apenas um modismo cultural ou um sinal da decadência das relações sociais, hoje virtualizadas. Ela é um problema (ironicamente) muito verdadeiro, que nos distancia da busca honesta por soluções aos nossos desafios – todos eles muito reais. Dizer que toda e qualquer verdade pode ser questionada, o que é um princípio básico da ciência, não significa que todas as versões circulantes sejam igualmente válidas. Precisamos resgatar o compromisso com a melhor versão possível dos fatos, a melhor resposta que podemos dar a nossos questionamentos, alicerçados na análise rigorosa da realidade.

Submergir no vale-tudo da relativização generalizada pode trazer consequências bastante desagradáveis, como já perceberam norte-americanos e britânicos – e nós, brasileiros, ainda não? Ao que tudo indica, as próximas eleições presidenciais no Brasil serão um terreno fértil para a difusão de narrativas inverídicas. É papel da imprensa e dos intelectuais promover debates honestos que rejeitem firmemente a dissimulação dos fatos e defendam o compromisso com a explicação da realidade.

Jeferson Ferro é professor do curso de Jornalismo na Uninter e pesquisador do grupo Cinecriare.

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